Receção e recepção: a aproximação ortográfica

Consultar o magnífico Dicionário de Luís de Camões é um prazer e um sofrimento, além de uma necessidade. O sofrimento deve-se ao facto de estar contaminado pelo chamado acordo ortográfico (AO90).

Entrar na letra R acaba por nos proporcionar um divertimento amargo.

Encontramos aí vários verbetes dedicados à recepção da obra de Camões em diferentes países.

Os textos escritos por estudiosos portugueses começam pela palavra-coisa “Receção”. Já o brasileiro Gilberto Mendonça Teles assina o verbete “Recepção de Camões na Literatura Brasileira”.

O chamado acordo ortográfico, se bem se lembram, servia para exterminar ou esbater as diferenças ortográficas.

Refaçamos uma síntese. Com o AO90:

1 – palavras com diferentes grafias passaram a escrever-se da mesma maneira;

2 – palavras com diferentes grafias mantiveram diferentes grafias;

3 – palavras com a mesma grafia passaram a escrever-se de maneira diferente (como é o caso de receção, em Portugal, e recepção, no Brasil);

4 – apareceram duplas grafias quando só havia uma (nós, portugueses, por exemplo, podemos escrever “expetativas” e “expectativas”).

Sobre o primeiro ponto, muito haverá a dizer, mas os outros três deixam tudo dito acerca da comédia que é o AO90.

Se tiver havido ocorrências de recepção em vez de recessão, agradeço que mas facultem

Corrigiram? Antes isso. Mas o mal já estava feito. Exactamente.

A recessão já chegou à língua

recessãoEsta notícia do Sol é um autêntico repositório da recessão em que vive o uso da língua portuguesa. O jornal, que não segue o chamado acordo ortográfico (AO90), recorre aos serviços da Lusa, praticante do alegado acordo. Resultado: a notícia referente à recepção de alunos estrangeiros no Instituto Politécnico de Leiria (IPL) terá aparecido como “receção” no texto da agência noticiosa e transformou-se em “recessão” no jornal.

Vale a pena repetir: por várias razões, a iliteracia já era imensa no reino da língua portuguesa. O AO90 veio agravar o problema e a confusão entre “receção” e “recessão” confirma, entre outros aspectos, a importância das chamadas consoantes mudas. Recorrendo à imagem sempre profícua da construção civil, estamos longe de resolver problemas nas fundações e andamos entretidos a colocar telhas que não se seguram e deixam entrar entrar chuva por todo o lado.

Por outro lado, também não é bom sinal que se use a expressão ‘kick-off’, quando a língua portuguesa já deu o ‘pontapé de saída’ há vários anos.

Adenda: faltou dizer que descobri a notícia no mural do Francisco Belard.

Acordo Ortográfico: e quando um brasileiro procurar a recepção de um hotel…

 

Graças à uniformização ortográfica alegadamente proporcionada pelo chamado acordo ortográfico (AO90), será cada vez mais provável que os turistas brasileiros, ao procurarem a recepção de um hotel em Portugal, deparem com a “receção do hotel“.  Efectivamente, por obra e graça do AO90, a palavra em causa passa a ter grafias diferentes: a primeira mantém-se no Brasil, a segunda é novidade em Portugal.

Imagine-se que o turista em causa sabe que Portugal já adoptou o AO90. Imagine-se, ainda, que o mesmo turista, à semelhança de muitas pessoas, iludido por publicidade enganosa, ficou a pensar que portugueses e brasileiros utilizavam, agora, a mesma grafia para todas as palavras. O surpreendido turista poderá imaginar que o hotel ainda não adoptou a nova ortografia ou poderá chegar à conclusão de que, afinal, o chamado acordo ortográfico será, com certeza, ortográfico, mas dificilmente será um acordo.

É claro que a cereja no bolo desta confusão estará visível na chapa que a recepcionista poderá ostentar na lapela: aí poderá ler-se “Fulana. Rececionista“.