A informática, até há pouco tempo, estava longe de ser um bem de consumo. Se dava uma travadinha no computador lá de casa, ou se sabia mexer nas entranhas do bicho ou se telefonava a um amigo que ajudasse. O informático estava na mesma lista onde se metem os médicos e os advogados, aqueles de quem mais cedo ou mais tarde se precisará.
Actualmente, a maturidade do mercado das tecnologias da informação ainda não está ao nível de outros mercados amadurecidos, como o da industria automóvel. Quem compra um automóvel não precisa de o saber manter ou reparar. São serviços incluídos no acto da compra.
Para o bem e para o mal, os tablets e os smartphone, com as suas app stores, são a transformação do computador num máquina de lavar roupa. Ou num carro. Continuarão a existir mecânicos dos bits mas cada vez menos farão reparações no carburador do microprocessador. O conceito das app stores, embrenhado em sistemas operativos desenhados de raiz sob a alçada deste novo paradigma, permite uma integração sem precedentes, transferindo a complexidade de manter a máquina a funcionar para a operadora de telecomunicações e para o fornecedor de software.
Os ganhos consistem em trazer esta ferramenta a um conjunto de pessoas que, de outra forma, ficaria de fora. Outros ganhos existem, por exemplo quanto à pirataria e ao custo do software. A primeira passa a ser algo residual, dado o controlo que app store impõe no canal de distribuição. E o processo de compra de software, baseado na aquisição de módulos para funções específicas em vez de pacotes tudo-em-um, conduz a preços muito inferiores aos praticados até agora.
É esta nova aproximação à informática um mundo de vantagens? Longe disso. As app stores são controladas por gigantes da informática, que ditam as regras do jogo e que as podem a qualquer momento mudar. E mudam, desde impedirem que determinado software seja disponibilizado sem razão aparente (a Apple já o fez mais do que uma vez) até às alterações unilaterais nos termos de serviço (mas com a opção “se não quer, vá-se embora”).
Também o conceito do sempre ligado, inerente aos tablets e smartphones, traz novas questões quanto à privacidade, apesar dos utilizadores não apresentarem (ainda) grandes preocupações quanto a este aspecto. A troco de cinco tostões, quantos não dão os dados pessoais sem perceberem que o free não é gratuito – é a moeda de troca para angariar aquele que é o principal produto destes gigantes: você.
A própria existência de software livre, uma alternativa actual e de elevada qualidade ao software comercial, fica em risco. Plataformas como Android, iOS e Windows Phone são sistemas fechados (Android inclusive), contrariamente ao Linux, onde o software livre floresceu.
Finalmente, estas novas plataformas, funcionando em íntima colaboração com as suas redes sociais, acabarão por, inexoravelmente, trazer profundas alterações aos conteúdos que actualmente se encontram na Internet. Neste momento já é visível no YouTube como a publicidade se está a posicionar na visualização de vídeos, fazendo antever que conteúdos que agora tomamos como gratuitos poderão deixar de o ser. O Google Search continuará “gratuito”? E a Wikipédia? E o Facebook? Quando o mercado estiver dominado por uns poucos gigantes, não serão alterações difíceis de concretiezar. Começa-se por um serviço plus e, passado pouco tempo, o free desaparece.
Outra alteração, que já vai acontecendo, será na publicação individual. O Facebook e o YouTube, é sabido, actualmente censuram conteúdos que lhes pareçam inapropriados. As grandes indústrias do entretenimento olham para os produtores individuais de conteúdos como inimigos, fazendo-lhes guerra a pretexto da pirataria (veja-se o recente caso do vídeo retirado do YouTube, a pedido da editora, porque uma canção era traulitada no vídeo). A Comissão Europeia e o Senado dos EUA têm repetidamente tentado fazer passar leis quanto à obrigatoriedade de se estabelecer uma identidade única para quem publique na Internet. Existe, portanto, vontade política e económica para que o controlo da auto-publicação se torne uma realidade e, novamente, um mercado das tecnologias da informação controlado por poucos é muito mais permeável a pressão do que aquele que agora existe.
Leituras:
- Tablets will challenge PC sales by 2017 as Android passes iPad, says IDC
- 6 reasons why Apple got it right with iPad while others screwed up in the past [Opinion]
- The demise of Microsoft’s monopoly and the PC market, by the numbers
- Mafia do Copyright Inglesa (RIAA UK)
- W3C aprova DRM para a Web
- O negócio tradicional do entretenimento 4/4: a árvore das patacas
- Clean IT – ou Limpar a Internet
- Pré-crime agora chama-se TrapWire
[…] à redefinição do conceito de computador para a maioria da população (post relacionado: Apenas um tablet… ou o Cavalo de Tróia da Internet). É certo que estes números são de apenas um site, mesmo com o impressionante tráfego que gera. […]