Sou do país que arde

(Outro texto publicado em Setembro de 2005, no Caderno Centro do Jornal de Notícias, depois de um verão em que se registaram os piores incêndios de sempre em Portugal. Até ver. De novo, 12 anos passados, nada mudou, tudo sobre o que escrevi em 2005, se agravou).

«Há pouco mais de três semanas saí de Portugal. Com um sol abrasador. Com um calor insuportável. Com o país a arder de norte a sul. Regressei na semana passada. Menos calor. Alguma (pouca) chuva, finalmente. No momento em que escrevo, chove sobre a ria ali ao fundo na janela. E eu que gosto do Inverno, mas não particularmente de chuva, recebo estes pingos como uma dádiva. Eu e todos os meus conterrâneos, presumo.

Durante a minha viagem choveu torrencialmente nas duas primeiras semanas. Uma chuva aborrecida para quem está de férias, mas que me soube bem, depois de tanto tempo a respirar um ar cheio de fumo e a trabalhar com tanto calor. Uma destas semanas foi de trabalho. Um congresso europeu de sociologia rural. Debateram-se muitos assuntos, entre os quais o abandono das áreas rurais, que acontece essencialmente na Europa do sul, na Europa mais periférica, naquela onde Portugal se inclui por muitas razões e de onde vai lentamente saindo por outras tantas. Portugal é um país que há muito que deixou de ser rural. Portugal é um país que vai deixando ao abandono vastas áreas de território. Aldeias desertas, florestas com árvores de ninguém, casas em ruínas. Portugal é um país onde a agricultura não tem um peso económico substancial, se exceptuarmos algumas, muito poucas, áreas do Ribatejo. Portugal é um país onde a função social e ambiental da actividade agrícola tradicional, ainda que reconhecidamente importante, também se vai perdendo. Estamos a produzir terras de ninguém. De que ninguém cuida, com que ninguém parece importar-se, a não ser uns esporádicos turistas de máquina fotográfica em punho que se deslocam ao Portugal rural ‘profundo’ para ver os vestígios do que outrora foram as casas, as actividades, as pessoas. Vêm sombras do passado e parecem contentes com isso. Destas aldeias desertas também se foi falando no congresso onde estive na última semana de Agosto. Das novas funções do mundo rural também. Da função turística e de recreio. Da função ambiental. Da função agrícola. Da função florestal. Tudo relacionado, claro. Como tem de ser. Tudo associado na tarefa última: a requalificação do território rural. Desde há 50 anos que em Portugal persistimos em não querer ver (e intervir sobre) a desqualificação de todo o interior, de norte a sul. Daqui a alguns anos, senão mesmo agora, ver-nos-emos confrontados com a difícil tarefa de intervir sobre territórios que já perderam tudo. Qualificar o desqualificado. Repovoar o despovoado. Reconstruir das ruínas. Será ainda possível?

Uma das consequências mais catastróficas da desertificação humana e da perda das dinâmicas económicas e sociais das áreas rurais portuguesas acontece todos os anos, quase com data marcada. Falo do que já nos cansámos de falar. Dos incêndios. E falo deles neste dia de chuva. Falo deles porque, embora gostemos de pensar (e os jornais e as televisões de noticiar) que somos um país de incendiários, aquilo que somos é fundamentalmente um país que arde. E que arde todos os anos, com data marcada. E que arde sobretudo porque nos esquecemos de actuar sobre as causas principais. Que arde porque as nossas florestas não são ordenadas. Nem limpas. Porque as actividades que anteriormente faziam parte integrante da vida das populações rurais, hoje são negligenciadas. Pelos proprietários florestais. Pelos governantes. Porque as aldeias estão vazias. Porque as tarefas agrícolas já não se fazem. Porque a floresta cresce, também ela, abandonada.

Nestas três semanas perguntaram-me com frequência de que país era eu. Portugal, fui respondendo a quase desconhecidos e a colegas de profissão. Ouvi sempre em contra-resposta: ‘Portugal? Está tudo a arder em Portugal, não é?’ Ninguém (nem mesmo os colegas que conheço há anos de outros encontros científicos) se lembrou de mais nada para dizer sobre o meu país. Ninguém falou da hospitalidade, dos vinhos, da comida, do sol, por exemplo. Ninguém sabia mais nada de Portugal a não ser que somos um país que arde. Todos os anos, com data marcada. Sem que ninguém pareça importar-se muito com isso. Sem que ninguém se preocupe seriamente com políticas de requalificação dos territórios rurais. Com políticas de ordenamento florestal. Para o ano, mais ou menos na mesma altura, noutro sítio qualquer, a outras pessoas, diante da mesma simpática pergunta, responderei de outra maneira. Responderei que sou do país que arde. Saberão todos de que falo. As explicações que me pedirão a seguir sobre as razões desta recorrente catástrofe serão as mesmas. As respostas, apesar das recentes medidas anunciadas pelo Governo, lamentavelmente parece-me que serão também»

Comments

  1. Nascimento says:

    Não há resposta porque tem razão.Ou devo dizer que teve?Não entende ou é preciso fazer-lhe um desenho que daqui a uns anos tudo será como hoje? Não acredita?Olhe bem no você que se engana: …” nada mudou.”.. claro que mudou; estão mais VELHOS, os filhos da puta! E os MORTOS? Ora, falta pouco para os FESTIVAIS DE VERÃO!

  2. Paulo Só says:

    É claro que o problema é mais complicado do que parece. Trata-se de um modelo de desenvolvimento. Seria bom que não houvesse muito aproveitamento político, porque aqueles que já têm uma solução na manga são os mesmos que não fazem nada. Na realidade as soluções prontas são alibis para não fazer nada. É preciso repensar o que queremos fazer dessas regiões rurais. Não é fácil. Os portugueses são sobretudo comerciantes, mas isso não chega para fazer um país equilibrado. No Pingo Doce perto da minha casa não tem uma fruta portuguesa. Talvez fosse bom também integrar essa questão no problema dos incêndios. E a da energia. Será que as barragens são a melhor solução? A energia solar e eóiica não poderia fornecer meios para ajudar a resolver a questão?

Trackbacks

  1. […] cavacas. Por contraponto a um Zé Gomes Ferreira da SIC (ou, fórdefóquesseique, a uma senhora académica da Universidade aveirense) trago demasiada resina debaixo das unhas pra falar […]

Discover more from Aventar

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading