[Francisco Burnay]
Sou agricultor, e como tal, tenho algumas preocupações com as consequências de grandes tratados de comércio, como é o caso do acordo da UE-Mercosul.
O desenvolvimento das relações económicas entre países é algo desejável em princípio porque pode ajudar ao desenvolvimento, colmatar dependências e resolver ineficiências para benefício mútuo, criando e redistribuindo riqueza.
Por outro lado, a existência de diferenças profundas entre economias pode levar à disrupção de algumas cadeias de valor, e ao declínio de padrões produtivos que foram construídos a muito custo.
No caso da agricultura, os benefícios podem ser a criação de emprego, e a sustentabilidade das empresas agrícolas, por via da abertura do mercado e aumento das exportações e consequente aposta nas comunidades que estão empregadas na área.
Por outro lado, os riscos da competição entre bens produzidos em circunstâncias desiguais são, essencialmente, a concorrência desleal, o aumento da precariedade laboral e a manutenção de más práticas ambientais.
Na Europa, a tendência das últimas décadas tem sido a aposta na qualidade, na segurança alimentar, na qualificação profissional, na inovação tecnológica e na protecção do meio ambiente.
Ou seja, atingir níveis de elevada produtividade subindo de forma progressiva e sustentada os padrões nas várias etapas da cadeia de valor.
A agricultura praticada hoje na União Europeia atingiu um nível de qualidade e de exigência como nunca antes existiu. A regulamentação dos modos agrícolas de produção sustentável praticados no espaço da União – que são o Modo de Produção Integrada e o Modo de Produção em Agricultura Biológica – são bitolas europeias de grande exigência e sem paralelo noutras economias.
Veja-se o caso da Agricultura Biológica.
A América Latina contém 13% da área agrícola mundial, e contribui com 20% da área mundial aplicada à Agricultura Biológica. A Europa, que tem 5% da área agrícola mundial, contribui com 27% da área mundial para Agricultura Biológica.
Esta diferença é muito importante, e não fica por aqui.
Porque na prática, os padrões para a Agricultura Biológica são diferentes entre países, e existem pesticidas admitidos segundo as regras de uns que não são admitidos segundo as regras da União Europeia, por exemplo.
Os agricultores europeus estão a fazer um esforço considerável para aumentar a eficiência agronómica, apostando na agricultura de precisão, na irrigação eficiente, e respeitando a homologação fitossanitária e os padrões alimentares.
No caso do acordo do Mercosul, estamos a falar da abertura a um mercado onde a produção agroalimentar ainda não atingiu estes níveis de exigência.
Portanto, o risco é o de permitir-se que os produtos agrícolas, como alguns cereais e hortícolas, em particular o milho, a soja, e alguns outros produtos como a carne sejam postos lado a lado com os produtos europeus, com preços diferentes, e produzidos em circunstâncias fundamentalmente diferentes.
No caso da carne, por exemplo, que depende de um tipo de pecuária em muitos aspectos impensável na Europa, estamos a falar de uma quota de importação entre 22 e 25%, que corresponde a cerca de cem mil toneladas para o total das importações de carne da União.
Isto representa 1% da produção de carne do Brasil, a níveis de 2018, e para termos uma noção de escala, a produção de carne só no Brasil já é superior em 24% à da totalidade da União Europeia.
Hoje, para cada euro que pagamos por carne europeia, temos de pagar apenas 69 cêntimos por carne argentina, e menos um cêntimo do que isso para a brasileira.
Portanto, retirar barreiras à importação, não só em termos de tarifas mas também de critérios fitossanitários, pode criar sérias dificuldades a muitos agricultores europeus.
Ao consumirmos estes produtos por serem mais baratos, estamos a sustentar uma parte da economia em práticas antiquadas, desumanas e insustentáveis, e ao remover barreiras comerciais sem cuidado vamos estar a sancioná-las economicamente.
Estamos ainda a retirar competitividade aos produtores europeus, basicamente desvalorizando o investimento na agricultura sustentável e todo o progresso que até aqui foi feito sem ter uma ideia clara de qual será exactamente o benefício.
Isto é uma contradição, um risco, e muito possivelmente um retrocesso.
No contexto actual, de alterações climáticas e de perda sustentada da biodiversidade, onde na Europa todos andamos a tentar arranjar soluções, a ideia seria usar o comércio como uma alavanca para exigir mais de todos, e não menos.
A explicação que eu tenho para esta contradição é que quem elabora estes tratados de comércio ou tem apenas uma visão parcial do seu impacto, ou será ainda porventura parte interessada no afrouxar da regulação. Eu acho que é possível fazer melhor.
A agricultura europeia não é perfeita, e ainda há um longo caminho a percorrer no domínio do trabalho emigrante, por exemplo, da harmonização regulatória em matéria de circulação de produtos fitossanitários no espaço Schengen, e agora também da mitigação das alterações climáticas e do combate à perda de biodiversidade.
O Acordo UE-Mercosul, nos termos actuais, parece-me ser não só um obstáculo no alcance destes objectivos como até contraproducente, se não forem acautelados critérios de justiça económica e social.
Quando a impressora do BCE só funciona para o capital, é o que temos, para a populaça não se revoltar muito.
E o Brasil também se trama quando o câmbio se movimentar no sentido errado.