Cego e surdo

Intercidades. Devidamente munido de alguns livros, estou pronto para a viagem, preparado para entrar noutros mundos e protegido contra o tédio, dispensado, portanto, de conversar com desconhecidos. Ao meu lado, senta-se um homem. Baixa a mesinha mínima presa ao lugar da frente e poisa sobre ela um livro de capa vermelha, folhas mais largas do que altas. Apesar do formato estranho, adivinho um irmão leitor. Abre o livro: várias páginas de uma partitura musical. As mãos, poisadas nas coxas, começam a percorrer um teclado imaginário e o pé vai pisando um pedal do mesmo piano. Imaginário, digo eu, claro, porque, no mundo deste homem sentado ao meu lado, sou cego e surdo. Saiu antes de mim e deixou-me aqui o piano.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    Já li este texto três vezes. Tem o dom de nos fazer sonhar por uns minutos.
    Demasiado bom para ser comentado. Fiquemos apenas com o imaginário de uma das muitas viagens de comboio possíveis.

  2. dariosilva says:

    O intercidades é uma réplica do Portugal a sério.

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