Bom dia?

Inspirado num texto da página https://www.facebook.com/Livrodponto

 

Era um professor que não cumprimentava colegas, porque, no fundo, detestava professores. Imagine-se o que será detestar professores e conviver com professores todos os dias da semana. Como se isso não bastasse, era casado com uma professora e meio professor por parte da mãe, mais um quarto do lado do avô materno. Como acontece com todos os professores, antes de ser professor, já tinha lidado com dezenas de professores, entre escola primária (era do tempo em que se chamava escola primária ao primeiro ciclo, imagine-se a antiguidade, a senectude) e a faculdade. Entre a casa e as escolas, nunca teria passado um dia sem se relacionar com, pelo menos, um professor.

O professor F. (vamos chamar-lhe assim, para manter o anonimato) vivia, por isso, em estado de sítio por se sentir sitiado, cercado de professores que nunca levantariam o cerco. Um dos dias mais felizes da sua vida consistira naquele em que passara a escrever sumários numa plataforma digital – nunca mais o viram na sala dos professores.

Um leitor aparentemente mais inteligente poderia perguntar por que razão um homem que tanto odiava professores não escolhia outra profissão. Aviso, desde já, o leitor de que a minha responsabilidade de narrador não faz de mim um ser omnisciente. Por outro lado, a vida está cheia de incongruências e o ser humano raramente é racional. Finalmente, se o leitor não gostar da história, escolha outra e meta-se na sua vida, que uma coisa é ler, outra é coscuvilhar.

Um dia, deparou com M., uma jovem professora que não conseguia dominar a raiva que lhe causava o facto de não ser cumprimentada. Desde pequenina, no prédio onde morava, perseguia vizinhos que não respondessem aos cumprimentos que lhes dirigia no elevador, chegando a ser repreendida pelos pais, arrependidos de terem insistido tanto em que a miúda fosse educada e respeitadora – assim como há pessoas que lavam frequentemente as mãos, M. desenvolvera uma aversão à ausência de cumprimentos.

Quando começou a dar aulas, diante dos grunhidos de alguns professores mais velhos que procuravam fugir a saudações matinais ou outras, M. repetia “Bom dia!” em tom imperativo, exigindo respostas. Nos corredores, parava os alunos que fingiam não a ver. A grande alegria da jovem professora fora ter estado numa escola em que a funcionária da portaria, a senhora R., era uma cumprimentadora entusiasta que recebia professores, alunos, encarregados de educação com verdadeiras felicitações.

Um dia, M. deu por si colocada numa substituição, na escola onde F. fazia parte da mobília, expressão que une, há muitos anos, a classe docente à indústria dos móveis. Numa das poucas idas do velho professor à sala dos professores, cruzaram-se, o rezingão fugidio e a furiosa mesureira. M. disparou um “Bom dia!”, não tendo obtido sequer um murmúrio de resposta. Palavra que não disseste! Era ver F. a fugir, diante de uma M. cada vez mais assanhada. Vieram professores, funcionários, elementos da secretaria e membros da direcção – a conciliação entre o voto de silêncio de F. e a ira verbosa de M. era impossível.

Nos poucos dias em que ainda coincidiram, F. passou o tempo a tentar esconder-se de M., que andava pelos corredores a gritar bons-dias à esquerda e à direita, enquanto garantia, sempre em altas vozes, que sabia onde estava o colega e que havia de o encontrar. No escuro do armário das vassouras e dos detergentes, F. tremia, suava, tapava os ouvidos e foram dar com o pobre homem em posição fetal.

Teve um esgotamento nervoso e ainda passou por um internamento. Graças ao descanso, à terapia e à medicação, atingiu alguma tranquilidade, até ao momento em que um outro paciente, simpática e inconscientemente, lhe disse um alegre e firme “Bom dia!”

Comments

  1. JgMenos says:

    Muito bem!
    Sabe contar um história.´

    • António Fernando Nabais says:

      Ó coiso, tive tanto prazer em escrever esta treta e tinhas de vir infectar a caixa de comentários? Vai lá beijar o relicário onde guardas o metatarso do Botas!

      • JgMenos says:

        A intenção também foi essa: fazer-te expor o teu natural!

        Mesquinho, abrilesco, ressabiado…

        Nada disso exclui, ser uma história bem contada.

        • POIS! says:

          Muito bem!

          Pelo Menos, sabe cagar uma post.

          De pescada! (do saudoso SAPP)

          • António Fernando Nabais says:

            Assim está melhor, fascitazinho nojento do seu aventador favorito! Já me sinto mais lavado. Este comentário ficou num sítio estranho, mas é uma resposta ao “foleiro” com que o meu menos me mimoseou.

        • António Fernando Nabais says:

          Ó menos, as tuas críticas vêm de um região muito baixinha, são medalhas que uso com orgulho: uma excrescência como tu considerar que sou “mesquinho, abrilesco, ressabiado” é sinal de que estou no sítio certo, que é onde tu não estás. Se me queres atingir a sério, elogia-me – até tive de ir tomar banho, credo, que nojo!

          • JgMenos says:

            Hesito em chamar-te foleiro por não querer ofender quem honestamente dava ao fole para que música de órgão promovesse alguma elevação dos espíritos.

            Vai daí que a, mesquinho-abrilesco-ressabiado, só me ocorra acrescer o ignorar a tua miséria enquanto dela guardar memória.

      • POIS! says:

        Vá lá Nabais. Não seja chato.

        Quem sabe contar um história sabe, pelo Menos, contar dois história.

        Venha lá mais um história bem contado, carago!

  2. Filipe Bastos says:

    Bom texto, Nabais. Gostei também do do comboio e do piano.

    Este do prof lembrou-me um conto que li há muitos anos, salvo erro do Pitigrilli: todos os dias um homem era cumprimentado por outro no eléctrico. Ele respondia sempre ao cumprimento. Mas um dia pensou: “eu não o conheço! afinal quem é ele? porque me cumprimenta? isto não faz sentido nenhum!”.

    Deixou então de responder-lhe; o outro ficou varado. O homem passou a sofrer diariamente o olhar reprovador do outro. Tentou mudar de horas e de eléctrico. Debalde: o outro aparecia sempre. Começou a desesperar. Não sabia o que fazer. Não podia voltar a cumprimentá-lo: não havia volta atrás!

    Salvo erro (já o li há muito), teve finalmente paz: deixou de ver o outro. Veio a descobrir que morrera. Voltou a andar de eléctrico descansado, desta vez com um sorriso.