Surrender – O striptease de Bono

Não, não vos vou falar sobre o Galamba ser ministro. Seria falar sobre um Portugal que jaz morto e arrefece e eu já não dou para esse peditório. Hoje vou escrever sobre um livro que me agarrou nos últimos dias de 2022 e no primeiro dia do novo ano. Literalmente.

Um livro que diz mais a quem foi adolescente nos anos oitenta e até noventa do século passado do que aos mais jovens leitores (e autores) do Aventar. Um livro que nos conta a vida e a obra de um irlandês adolescente em 1978 até aos dias de hoje. Eu não sou gajo de ter saudades do passado. Nisso sou como o outro, tenho saudades é do futuro. Mas não esqueço, pelo menos tento, não esquecer o passado e a verdade é que nos anos oitenta a personagem deste livro e os seus amigos mais chegados foram personagens na vida de muitos de nós. Na minha foram.

Ainda me lembro, como se fosse hoje, quando nos idos de 87, Março, um amigo de um amigo tinha um amigo que era familiar (ou coisa do género) do dono da Tubitek e que nessa mítica loja já repousavam os primeiros LPs que estavam destinados a um conjunto único de gajos bafejados pela sorte das amizades (ainda hoje não sei se era verdade, mito ou mera estratégia comercial de vendas) e que me fizeram num pulo meter-me no 9 e seguir directo para a baixa do Porto levantar, a troco de uns valentes escudos, o meu exemplar de uma das obras primas da personagem deste livro que hoje serve de mote a esta posta aventariana. E meus amigos, se desde 1984 andei a pastorear entre um céu vermelho sangue misturado com um fogo inesquecível, a partir desse Março de 97 e da sua árvore de Josué nunca mais a personagem deste livro ficou para trás. Foi com The Joshua Tree que Paul David Hewson (Bono) e os seus amigos Edge, Adam e Larry Mullen reunidos sob o nome de U2, me conquistaram definitivamente. É verdade que a actuação no Live Aid já tinha sido uma coisa de outro mundo. Ou que ouvir o álbum ao vivo “Under a Blood Red Sky” já me deixava em pele de galinha mas…..mas o The Joshua Tree convocava outros sentimentos. Mais profundos. Talvez um pouco mais adultos. 

Eu nunca fui duro de ouvido ou, pelo menos, procurei não o ser. Tanto gosto de ouvir Madredeus como Xutos. Tanto ouço Radiohead como até consigo ouvir Muse. Os Sigur Rós fazem sempre parte das minhas playlists como um Xoel Lopéz ou uns The National. E que bem me sabe ouvir alguma da música electrónica como deliciar-me a ouvir Abrunhosa. Sem esquecer uns Vetusta Morla ou os Legião Urbana. E como me deixo encantar pelas vozes femininas do México e da América Latina ou os Blues e o Country americano. E sim, suspiro com Nick Cave e com Tom Waits. Ah, sem esquecer o meu passado com os The Cult, The Mission, Siouxsie and the Banshees ou Joy Division. E sim, sou um devorador da chamada música alternativa e da indie music. Sou um apaixonado por música que não sabe tocar um único instrumento. Ok, se “ferrinhos” contar como tal, menos mal….E se ainda hoje consigo sentir o verdadeiro gozo da descoberta procurando andar minimamente atento aos novos sons que por aí pululam, a verdade é que os U2 são, desde os idos de oitenta, o meu porto de abrigo musical. A eles volto sempre. Sempre. Por isso, quando soube que Bono iria lançar um livro, não sosseguei enquanto não lhe deitei a unha. Quando vi a sua entrevista no The Late Show do Stephen Colbert que termina com uma das mais belas versões de “With or Without You” soube que o iria ler num sopro. E assim foi.

“Surrender”, o livro de Bono é um verdadeiro striptease. São quase 580 páginas de alguém que realmente se entregou, se rendeu e decide contar tudo. O subtítulo, “40 Canções, Uma História” é o gancho de toda a narrativa. São essas canções que nos explicam as múltiplas facetas deste irlandês. O seu amor por Ali, a sua mulher. A relação de amor-ódio-subjugação com o seu pai, a perda da mãe aos 14 anos, daquele que viu e sentiu as facetas de uma Irlanda dividida entre católicos e protestantes, daquele que tomou partido em Africa por quem devia e com isso dançou com Deus e o Diabo numa dança interminável pelos outros e para os outros. Uma narrativa constante entre os seus anjos e demónios e o assumir de erros, a explicação para eles – aqui, neste ponto, só me apetece citar-lhe uma frase que tenho nas minhas redes sociais e que é uma espécie de mote na minha vida: “Não expliques, os verdadeiros amigos não precisam e os teus inimigos não acreditam”, talvez o faça se voltar a cruzar-me com ele como naquela vez no Mónaco em 2018. 

Eu sei que os “seguidores” dos U2 vão comprar e ler este livro, talvez sejam os culpados por este ser o segundo livro de não ficção mais vendido em Portugal actualmente. E sei que boa parte das linhas os vai surpreender. Porém, a maior surpresa será para aqueles que, não gostando dos U2, sobretudo por não gostarem do Bono. A surpresa que os levará a compreender o porquê deste tipo tanto se sentar à mesa com Clinton ou Obama como com Blair ou Bush filho. Talvez compreendam que Bono tenha seguido piamente as sábias palavras de Martin Luther King sobre a necessidade de dialogar com todas as partes e aprender a procurar no inimigo um ponto por muito ínfimo que seja de proximidade para, assim, se conseguir esse algo superior. O combate à fome em África ou o combate ao VIH/SIDA  era, são, bem mais importantes do que os custos de sentar à mesa com Deus e o Diabo. E é, igualmente, um livro sobre um idealista não arrependido mas desiludido. De um homem hoje maduro que continua a acreditar no poder da música. Um homem do rock que é diferente. Nem pior nem melhor do que os outros, apenas diferente. 

O melhor mesmo é cada um descobrir por si só lendo “Surrender” e a partir daí tirar as suas conclusões em vez de se limitar a debitar as conclusões de terceiros. Para mim foi uma boa surpresa. 

Comments

  1. Paulo Marques says:

    “A surpresa que os levará a compreender o porquê deste tipo tanto se sentar à mesa com Clinton ou Obama como com Blair ou Bush filho. ”

    É, de facto, um mi$tério.

  2. gosto de U2 mas estou com preguiça de pegar neste.

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