O que responder?

voltaire statue

Voltaire, Dicionário Filosófico, excertos do artigo “Fanatismo”:

Resumindo, todos os horrores de quinze séculos podem ser renovados num só, desde as pessoas sem defesa chacinadas aos pés dos altares, dos reis esfaqueados ou envenenados, um vasto Estado reduzido a metade pelos seus próprios cidadãos, desde a nação mais belicosa até à mais pacífica dividida pela espada desembainhada entre o pai e o filho, os usurpadores, os tiranos, os executores, os parricidas e os sacrilégios violando todas as convenções divinas e humanas pelo espírito da religião: cá está a história do fanatismo e dos feitos.

Não há outro remédio a esta maldita epidemia que o espírito filosófico, que espalha, passo a passo, os costumes dos homens e que impede os acessos do mal. As leis e a religião não chegam para lutar contra a peste das almas. A religião, longe de ser um alimento salutar, torna-se um veneno nos cérebros infectados. Os miseráveis inspiram-se sem cessar no exemplo de Aod que assassinou o rei Églon; de Judith que cortou a cabeça de Holopherne enquanto dormia com ele; de Samuel que desfez o Rei Agag; do padre Joad que assassinou a sua rainha etc. etc. Eles não percebem que estes exemplos, que são respeitáveis na Antiguidade, são abomináveis no tempo presente: eles põem a sua loucura na própria religião que os condena.

O que podemos responder a um homem que te diz que prefere obedecer a Deus que aos homens e que em consequência disso ele está certo de merecer o céu por te matar?

Os líderes dos fanáticos, que colocam os punhais nas suas mãos, são uns velhacos maliciosos. Eles assemelham-se ao Velho da montanha que, diz-se, deu às pessoas fracas uma pequena amostra do paraíso, prometendo-lhes uma eternidade de tais prazeres, desde que eles matassem todos aqueles que ele lhes ordenasse. Em todo o mundo só uma religião não foi conspurcada pelo fanatismo, a dos literatos chineses. Quanto aos filósofos, em vez de serem infectados por essa pestilência, eles foram um remédio contra ela pois o efeito da filosofia é compor a alma e o fanatismo é incompatível com a tranquilidade. Relativamente à nossa santa religião ter sido tão corrompida por estes infernais impulsos, é a loucura dos homens que se deve culpar.

Memória descritiva: um pormenor insignificante

Já aqui contei há meses a história de uma tele-confusão – convidou-me a RTP para ir falar sobre o local de nascimento do D. Afonso Henriques e, quando a entrevista, em directo, começou, fizeram-me perguntas sobre as origens do fado. Tenho uma história do género, mas passada num jornal diário em que colaborei.

Era o «Página Um», um diário ligado à esquerda extra-parlamentar. Depois de acabado o meu trabalho na empresa, ia para a redacção, na Rua Braamcamp, e encarregava-me da crítica de livros, de temas culturais e de um ou outro fait-divers. Com o Fausto, esse mesmo, o Fausto Bordalo Dias, o excelente cantautor, ocupava um pequeno gabinete. Ele fazia crítica de discos e espectáculos musicais. A política corrente é que estava a dar, por isso éramos uma espécie de párias, defensores de causas perdidas. Não nos ligavam nenhuma. Uma tarde, vinda de uma agência, chegou-me uma fotografia de um miliciano maronita sentado num degrau de uma casa destruída, descansando da fatigante tarefa de assassinar muçulmanos. [Read more…]