A poesia do neo-realismo (Poesia & etc.)

Há críticos e historiadores da literatura que consideram que o neo-realismo em Portugal se caracteriza essencialmente pelo discurso ficcional. Há quem seja mesmo da opinião de que não existe uma poesia neo-realista (Mário Sacramento, por exemplo) É uma questão de perspectiva. Caso se esteja a falar numa forma tipicamente neo-realista de fazer poesia, então talvez essa forma não exista. Porém, para lá da tessitura formal, há outros aspectos a considerar.

O fulcro vital do neo-realismo não reside na forma. Encontra-se na denúncia da injustiça social e da repressão política, típicas dos regimes autoritários de direita que governavam uma parte substancial da Europa no final da década de 30, quando o movimento começou a afirmar-se em Portugal. A depressão económica, a Guerra Civil de Espanha, preanunciando a II Guerra Mundial, a dicotomia fascismo-marxismo, constituem elementos indissociáveis da génese do movimento que, definido sinteticamente, constituiu uma transposição para a arte em geral e para a literatura em particular de uma dinâmica subsidiária do materialismo-dialéctico. No plano histórico, representa, como salientou Óscar Lopes, um fenómeno semelhante ao da Geração de 70. Porque as épocas de grandes clivagens políticas e sociais, desencadeiam geralmente novas formas literárias e artísticas.

A Geração de 70, ou geração de Coimbra foi como que um eco da grande crise europeia gerada pela guerra franco-prussiana e pela Comuna de Paris. Nas suas formulações, os escritores dessa geração, ultrapassando o socialismo utópico de Saint-Simon, Fourier e Proudhon, revolucionaram várias dimensões da cultura portuguesa, da política à literatura, onde a renovação se manifestou com a introdução do Realismo. [Read more…]

Poesia & etc. – Manuel da Fonseca

Esta série que hoje inicio tem um formato diferente das que anteriormente dediquei à poesia – neste espaço vão conviver poetas famosos, poetas populares, poetas menos conhecidos… Não será apenas gente já falecida – em alguns casos falarei de poetas vivos. E, de vez enquando, meterei um poema meu.. Para começar escolhi o Manuel da Fonseca, grande poeta e ficcionista.

Falei com Manuel da Fonseca por duas vezes. A primeira, faz hoje (precisamente) 50 anos, foi na noite de 2 de Janeiro de 1960. Como é posso referir com precisão, a data? Porque sei que foi no Inverno de 1960, no dia do aniversário do Mário Henrique Leiria (foi só ver em que dia tinha nascido – 2 de Janeiro de 1923).

Um grupo numeroso – o António José Forte, o Virgílio Martinho, o Saldanha da Gama, o Henrique Tavares e mais alguns de que não me recordo, fomos convidados para a festa de aniversário do Mário Henrique. Quando chegámos à Vivenda Maria Xavier, em Carcavelos, residência do Mário, uma das pessoas que já lá estavam, era o Manuel da Fonseca. [Read more…]

A máquina do tempo: nota sobre Federico García Lorca

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Depois de dois dias em que fui relatando o que ia acontecendo nas procura dos restos mortais de Lorca, vou hoje, finalmente, falar sobre a vida e a obra do grande poeta, embora os elementos essenciais da sua biografia estejam contidos nos dois vídeos que encabeçam este texto e que devem ser visionados de seguida, pois, no seu conjunto, constituem uma narrativa muito interessante.

Mario Hernández, catedrático de literatura espanhola da Universidade Autónoma de Madrid, grande estudioso da obra de Lorca, o jornalista Antonio Ramos, a empregada dos pais do poeta, María Matas e Alfonso Alcalá, da Casa Museu Fuente Vaqueros, traçam-nos um retrato impressivo, emocionado, mas veraz, da sua biografia. Dispenso-me de repetir esses dados. [Read more…]

Manuel da Fonseca – poeta

Aldeia

Nove casas

duas ruas

um largo

ao meio do largo

um poço de água fria.

Tudo isto tão parado

e o céu tão baixo

que quando alguém grita para longe

um nome familiar

se assustam pombros bravos

e acordam ecos no descampado

Manuel da Fonseca

 

PS . aventado pela Manuela, nossa leitora

A máquina do tempo: José Gomes Ferreira – um «lisboeta» nascido no Porto – 2

 

Quando José Gomes Ferreira, vindo da Noruega, voltou a Lisboa, encontrou um outro  país – A Revolução continua – diziam os apoiantes da «nova ordem» que reinava nas ruas e com a repressão que condicionava as mentes. Com um ou outro acidente de percurso, a direita católica e conservadora, o chamado Governo da Ditadura Militar, ia, decreto a decreto, sob a orientação cautelosa, mas obstinada, de um tal Oliveira Salazar, eliminando os vestígios da República, suprimindo as liberdades fundamentais. Alguns amigos eram os mesmos, outros tinham morrido.

 

E surgiram alguns novos – Manuel Mendes, Bernardo e Ofélia Marques (seus «compadres», padrinhos de seu filho Raúl), Carlos Botelho, Diogo de Macedo, José Rodrigues Miguéis, João Gaspar Simões Cottinelli Telmo, a Maria e o Chico Keil… E os neo-realistas Alves Redol, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Manuel da Fonseca, Soeiro Pereira Gomes, Carlos Queiroz… Olha, ainda há flores/ Mas quem se atreve/a cantar as flores do verde pino/no madrigal desta manhã de pesadelos?/ E tu, papoila, minha bandeira breve,/quando voltarás ao teu destino/ de enfeitar cabelos? Estes versos, escreveu-os José Gomes Ferreira para As Papoilas, uma canção popular composta por Fernando Lopes-Graça. Na realidade, os tempos não corriam de feição «a cantar as flores do verde pino».

 

Em 1933, logo em Janeiro, o governo a que Salazar presidia criava a Polícia de Defesa Política e Social, que passaria a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e depois a Polícia Internacional de Defesa do Estado, a PIDE, que ensombrou gerações de antifascistas, perseguindo, prendendo, torturando, matando. Em 1936 desencadeava-se em Espanha a rebelião fascista de Franco contra o governo legítimo da República – era a Guerra Civil que iria durar até 1939, num prelúdio sangrento da II Guerra Mundial, que eclodindo nesse ano, se manteria até 1945, deixando o mundo em ruínas.

 

Foi um período negro em que não publicou livros. Colaborou, sim, em revistas como a Presença, a Seara Nova, a Gazeta Musical e de Todas as Artes, na revista de cinema Imagem, no jornal infantil Senhor Doutor, onde publicou em folhetins As Aventuras de João Sem Medo. Foi na Presença que, em 1931, publicou o poema Viver sempre também cansa, que representou o arranque para uma fase decisiva da sua obra poética. Colaborou também na legendagem de filmes estrangeiros sob o pseudónimo de Álvaro Gomes.

 

Terminada a guerra com a vitória dos Aliados, nasceu entre os antifascistas portugueses a ilusão de que todas as ditaduras nazi-fascistas, lixo da História, iriam ser varridas pelas democracias vencedoras do conflito. Mas foi mesmo uma ilusão. Salazar, qual ilusionista de circo pobre, faz um truque, um passe de mágica – Portugal uma ditadura? Que ideia! – O regime corporativo, onde a saudação de braço estendido, como na Itália fascista ou na Alemanha nazi, foi ritual corrente e, por vezes, obrigatório, transformou-se numa «democracia orgânica».

 

Foi criado o Movimento de Unidade Democrática e Gomes Ferreira aderiu, tal como a grande maioria dos intelectuais portugueses e, em 1947, quando nasceu o ramo juvenil do MUD, escreveu a letra do hino «Jornada» ou «Vozes ao Alto», como é conhecido, com música composta por Fernando Lopes-Graça. Durante as frequentes e intensas lutas estudantis dos anos sessenta, será cantado até à saciedade por jovens, mesmo pelos que, mais à direita ou mais à esquerda, não militam no Partido Comunista, organização que estava por detrás do MUD Juvenil. O Jornada, foi também o hino que serviu de indicativo à estação clandestina Rádio Portugal Livre que, a partir de Praga, emitia diariamente para Portugal desde Março de 1962. Da colaboração entre Fernando Lopes-Graça e José Gomes Ferreira, nasceu também este «Acordai» aqui cantado pelo coro da Academia dos Amadores de Música:

 

Entre 1950, ano do O Mundo dos Outros – histórias e vagabundagens, selecção de crónicas publicadas na Seara Nova, e a sua morte, publicou cerca de quarenta títulos – poemas, obras de ficção, crónicas, livros de memórias, ensaios, peças teatrais, introduções, prefácios, comentários, notas, traduções. De um escritor que, nos primeiros cinquenta anos de vida, produzira pouco mais de meia dúzia de títulos, passou a ser um criador prolífico. No segundo fôlego do seu espírito criativo, vieram as grandes obras, as que o converteram num dos mais importantes escritores portugueses do século XX. Naturalmente que José Gomes Ferreira não publicou muito nesse primeiro meio século de vida, mas escreveu. Foi «enchendo gavetas com nuvens», para usar a expressão que ele próprio utilizou para classificar esses anos em que acumulou projectos que, por uma razão ou por outra, não concluiu.

 

Depois, as nuvens foram saindo das gavetas transmutadas em sóis luminosos: Em 1948 saiu a público Poesia I, que José considera o seu verdadeiro livro de estreia; em 1950 é publicado o volume de Poesia II, sendo também editado o livro de ficções O Mundo dos Outros. Colabora com Lopes-Graça em Líricas. Em 1956 publica Eléctrico. Em 1960 é a vez da obra de ficção, O Mundo Desabitado. Em 1961 é-lhe atribuído o Grande Prémio da Poesia pela Sociedade Portuguesa de Escritores pela Poesia III. Em 1962 é editada a Poesia IV e publicado Os Segredos de Lisboa. Em 1963 edita-se Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo. Em 1965 sai A Memória das Palavras – ou o gosto de falar de mim.1966 é o ano de publicação de Imitação dos Dias – Diário Inventado. Em 1969 publicou os contos de Tempo Escandinavo. Em 1971, O Irreal Quotidiano – histórias e Invenções. Em 1973 Poesia V.

 

25 de Abril de 1974: manhã cedo, Rosália acordou-o dizendo-lhe que havia movimentos de tropas em redor de Lisboa. José refilou, rabugento. Levantou-se e espreitou pela janela. Pouca gente na rua. Tocou o telefone. Era o Carlos de Oliveira: «Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa? Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso. Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro»: Depois «A Rosália chama-me, nervosa: – Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa. Corro e ouço.» (…) «Na Rádio a canção do Zeca Afonso…» «Sinto os olhos a desfazerem-se em lágrimas». Agora, sim, é tempo de cantar flores. É tempo das papoilas, bandeiras breves, voltarem ao seu destino de enfeitar cabelos. Mas José, nos seus 74 anos de vida, já sofreu muitas desilusões. Por isso, num encontro com escritores portugueses antifascistas regressados a Portugal após o 25 de Abril, José diz-lhes: «Que esta revolução das flores não seja a revolução das flores de retórica.»

 

Em 1975 saiu Gaveta das Nuvens – tarefas e tentames literários e o volume de crónicas Revolução Necessária. Em 1976 editou-se O Sabor das Trevas – Romance Alegoria. Em 197
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foi a vez de novo volume de crónicas: Intervenção Sonâmbula. Em 1978 saíram os volumes I, II e III de Poesia Militante. Foi eleito presidente da Associação Portuguesa de Escritores. Publicou Coleccionador de Absurdos e Cinco Caprichos Teatrais. Em 1979, nas eleições legislativas intercalares, foi candidato, por Lisboa, nas listas da APU (Aliança Povo Unido).

 

Em 1980 começou o tempo das homenagens – o presidente Ramalho Eanes, condecorou-o como Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada, recebendo depois o grau da grande oficial da Ordem da Liberdade. Nesse ano, numa altura em que o PCP já não estava «na mó de cima», portanto por idealismo e não por oportunismo como aconteceu com tantos, filiou-se no Partido Comunista Português. Publicou O Enigma da Árvore Enamorada – Divertimento em forma de Novela quase Policial. Editou-se ainda o Relatório de Sombras – ou a Memória das Palavras II. Em 1983 foi submetido a uma melindrosa operação cirúrgica, sendo também homenageado pela Sociedade Portuguesa de Autores. Em 8 de Fevereiro de 1985, morreu na sua casa da Avenida Rio de Janeiro, em Lisboa, vítima de doença prolongada.

 

Na obra de José Gomes Ferreira cruzaram-se três tendências ou correntes literárias, sem que se possa ligá-lo a qualquer delas: o eco da matriz saudosista que lhe ficou da iniciação com Leonardo Coimbra orientando-o para a devoção a Raul Brandão e a Teixeira de Pascoaes, a atracção pela forma insolitamente bela e onírica do surrealismo e o apelo constante do conteúdo do realismo socialista ou, como se chamou entre nós, do neo-realismo. Esta miscigénese deu lugar a uma escrita muito pessoal, muito original, muito fora das escolas e das classificações que os bem-pensantes usam como prótese, a crítica literária como bússola e a análise académica como bengala.

 

Falar, nestas breves linhas, de José Gomes Ferreira, foi como descrever o caminho trilhado pela inteligência através de um século manchado por numerosos estigmas – duas guerras mundiais com uma grave crise económica de permeio, o deflagrar da Guerra Fria, a ameaça da destruição nuclear, e as vésperas do colapso do «socialismo real». Em Portugal, o florescer e o ruir do sonho republicano, submerso no caos da I República e do episódio da aventura sidonista, a eclosão do corporativismo, a guerra colonial, a Revolução democrática e a desilusão que se lhe seguiu. José Gomes Ferreira, o escritor, o cidadão, viveu tudo isto nos 85 anos que a sua vida durou – alternâncias de períodos de vibração popular, de entusiasmo e esperança, com o doloroso e cinzento marasmo de quase cinquenta anos de ditadura de permeio.

 

Depois, antes da sua morte, ainda pôde assistir ao «regresso à normalidade», ao vazio que esta democracia formal nos deixa nas mãos e no coração. A sua escrita incorporou-se na luta de resistência activa que os intelectuais portugueses moveram contra a ditadura salazarista. Os seus versos, as páginas dos seus livros, as letras de canções que, musicadas por Lopes-Graça, andaram nas bocas dos antifascistas, fazem parte da luminosa estrada que sulcou uma noite mesquinha e criminosa. A sua obra foi um grito de inteligência no deserto de ideias que um regime tacanho quis fazer prevalecer sobre as mentes dos Portugueses.

 

Por isso, concorde-se ou não com as suas opções políticas, deve-se-lhe reconhecer a coragem de quem nunca se preocupou com o que lhe era conveniente, de quem sempre fez e disse o que lhe pareceu estar certo. Falar de José Gomes Ferreira foi como narrar o caminho que as suas palavras luminosas abriram através da noite escura que durante 48 anos desceu sobre Portugal. Falei de um dos grandes, de um dos maiores poetas portugueses. Ouçamos Luísa Basto cantar a sua (e de Lopes-Graça) «Jornada», mais conhecida por «Vozes ao Alto!»: