A máquina do tempo: Os encontros da imprensa cultural

 

Momento em que no II Encontro se guardava um minuto de silêncio em memória de Daniel Filipe.

 

Fui colaborador dos suplementos culturais do Diário Popular, do Diário de Lisboa, do Jornal de Notícias e de páginas e suplementos de numerosos jornais de província, entre outros, do Jornal de Évora, A Planície (Moura), O Templário (Tomar), A Nossa Terra (Cascais), Notícias de Guimarães, Jornal da Costa do Sol (Cascais), Almonda (Torres Novas), etc. No entanto, a minha experiência mais marcante em termos de imprensa cultural, foi a da revista Setentrião, em Vila Real, e a do suplemento Labareda de «O Templário», de Tomar. Colaborar na imprensa regional era um trabalho de militância cívica a que muitos escritores e jornalistas não se furtaram.

 

 Às vezes, sem que se esperasse, um trabalho publicado nessas humildes folhas ganhava uma grande divulgação. Lembro-me de uma entrevista que fiz para a Labareda, em Janeiro de 1964, a Fernando Lopes Graça (na qual, embora o maestro tenha desconversado comigo todo o tempo, o resultado foi interessante). Com alguns foros de sensação, foi abundantemente transcrita na imprensa diária, em resumos ou na íntegra, em quase todos os jornais, e mencionada em revistas de referência. Até o Diário de Luanda a publicou. Entre outras afirmações desassombradas, Lopes-Graça considerava os agrupamentos folclóricos, criados por António Ferro, o Goebbels português,  tão do gosto do regime, como «meras contrafacções» da cultura popular genuína.

 

 

 

Em 1963, alguns colaboradores dessa imprensa regional, lançaram a ideia de se realizar um encontro anual das páginas culturais. Para quem não se lembre ou não tenha vivido esse tempo, recordo que os suplementos culturais desempenhavam um papel importantíssimo na resistência de uma cultura autónoma, não controlada pelo regime. Naturalmente que eram submetidas à Comissão de Censura que, muitas vezes, cortava tudo ou quase tudo.

 

Entre os escritores que impulsionaram esse movimento recordo os de Manuel Ferreira, Mário Braga, António Augusto Menano, Manuel Simões, António Sales, Vasco Granja, António Cabral, Arsénio Mota, José dos Santos Marques, Bento Vintém, Joaquim Canais Rocha, Aurora Santos, Fernando Grade, Silva Ferreira, Santos Simões, José Ferraz Diogo, Alfredo Canana, Jorge Moita e tantos outros.

 

Lembro, como paradigma dos suplementos, o que se publicou durante muitos anos no «Diário de Lisboa». O suplemento do Lisboa, ágil, lesto na crítica, rico no elenco de colaboradores, era um modelo para todos os que criavam estas extensões culturais na imprensa regional. Os principais suplementos culturais, que saíam semanalmente (quase todos às quintas-feiras), constituíam um acontecimento.

 

Ali se criticavam os livros, as emissões de televisão e de rádio, as peças de teatro, os filmes. Os melhores jornalistas, críticos, professores, escritores, colaboravam. Nada que se compare com o que agora se faz. Um exemplo: o suplemento de sexta-feira do Público, a «Ípsilon», graficamente luxuosa quando comparada com os modestos suplementos da época, é uma coisada intragável, superficial, comercialóide, que agora já deito fora sem ler, numa papeleira que está à porta do estabelecimento onde compro o jornal.  Não me estou a lembrar de nenhum suplemento que mereça a pena ler, hoje em dia. Talvez o tempo dessa forma de fazer cultura tenha passado.

 

Por estas amostras bastardas, meros recipientes de publicidade de editoras de livros, de discos e de outros produtos, não se avalia o que eram, nesses anos que antecederam o advento do regime democrático, os suplementos culturais. Eram um pouco, como os blogues de hoje, uma forma de, pessoas que não tinham acesso às tribunas de imprensa, rádio ou televisão e de alguns «colunistas desempregados», para usar a curiosa expressão de Clara Ferreira Alves, se exprimirem. Alguns desses párias, desempregados ou nunca antes empregados, era gente silenciada pelo poder político e que encontrava nos jornais de província um porto de abrigo para as suas vozes.

 

A designação inicial dessas assembleias era Encontros de Suplementos e Páginas Culturais da Imprensa Regional. A designação foi depois simplificada para Encontros da Imprensa Cultural, dado que os jornais diários começaram também a enviar representantes. O primeiro destes encontros realizou-se na Figueira da Foz em 28 e 29 de Setembro de 1963.

 

Estiveram presentes, entre outros, os escritores Daniel Filipe e Alfredo Margarido. Na ordem de trabalhos, salientava-se o carácter essencialmente cultural dos suplementos e páginas culturais (vacina contra a suspeição das autoridades), referindo-se as dificuldades intelectuais de colaboração. Aliás, a comunicação a esse primeiro encontro da Labareda, suplemento de que eu era activo colaborador, exortava os intelectuais a abandonarem a sua torre de marfim e escrever para um público diversificado de estudantes e de trabalhadores, abandonando a linguagem pseudo-elevada em que habitualmente se exprimiam.

 

Apontava-se também a necessidade de criar alguma coordenação entre os diferentes suplementos e páginas, ao nível do intercâmbio de textos e apontava-se a conveniência de criar um prémio literário anual. Entre as diversas conclusões e medidas, destaca-se a criação de diversas comissões específicas, a instituição de prémios anuais (tendo-se elaborado os respectivos regulamentos) e, por sugestão de Vasco Granja, a marcação do II Encontro para a vila de Cascais.

 

 

O II Encontro realizou-se, em Junho de 1964, conforme ficara determinado, em Cascais, organizado pelo jornal «A Nossa Terra» daquela vila.  Em representação da Sociedade Portuguesa de Escritores, presidiu Manuel Ferreira que na abertura da primeira sessão de trabalhos se congratulou por se assinalar a presença de representantes de todos os suplementos activos do país, registando-se um avanço relativamente ao encontro da Figueira. Antes de se entrar na discussão da ordem de trabalhos, Santos Simões, do «Notícias de Guimarães» pediu um minuto de silêncio em memória de Daniel Filipe. Estava também presente o escritor catalão Fèlix Cucurull. Foi criado, por d
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isão tomada nesta reunião, o boletim «Encontro» de que apenas saíram dois números. Em Fevereiro de 1965 todos os arquivos e material gráfico da publicação foram apreendidos pela PIDE e preso o seu coordenador.

 

O III Encontro realizado em Guimarães, no Hotel das Caldas das Taipas,  em Agosto de 1965, sob a presidência do escritor Ferreira de Castro.1966. Na foto, vemos o momento em que intervinha Santos Simões, do «Notícias de Guimarães», anfitrião do Encontro.

 

Não existe uma informação pormenorizada sobre a evolução deste movimento. Ainda estive presente no IV Encontro, realizado em 1967 no Casino da Figueira da Foz, presidido, salvo erro, pelo escritor Mário Braga. Em 1968 passei uma importante parte do ano preso em Caxias, mas deve ter sido realizado o V Encontro. Em Fevereiro de 1969, em Guimarães, presidido por Mário Sacramento, houve o VI e creio que último Encontro de Imprensa Regional. Muito do que estou a dizer é dito de memória, não encontro registos credíveis e se alguém tiver elementos que aqui faltam ou puder corrigir falhas ou imprecisões por mim cometidas, ficarei grato. Porque era importante fazer a história deste movimento que, reunindo gente de pequenas cidades, fora dos dois grandes centros urbanos do País, conseguiu criar bastiões, redutos, onde se defendia a cultura das investidas da estúpida fera fascista.

 

Mas creio que depois não se realizaram mais encontros. A partir de 1969, a luta política agudizou-se, as pessoas que animavam os encontros iam sendo presas ou estavam absorvidas por essa luta que passara do papel para as assembleias de empresa, de faculdade, para os quartéis… Os passos cadenciados que abrem a «Grândola Vila Morena» ecoavam já no nosso horizonte. Dentro em pouco, os capitães do MFA começavam a reunir. Uma nova realidade se avizinhava e nela já não cabiam as modestas folhas dos jornais de província.

 

 

O III Encontro foi realizado em Guimarães, no Hotel das Caldas das Taipas,  em Agosto de 1965, sob a presidência do escritor Ferreira de Castro.1966. Na foto, vemos o momento em que intervinha Santos Simões, do «Notícias de Guimarães».

A máquina do tempo: Claridade – uma luz sobre o arquipélago

 

Viajar no tempo é a função desta máquina. Mas viajar no espaço, tal como navegar, também é preciso. Fiz umas viagens a Cabo Verde. Na primeira, há uns 12 anos tive uma grande surpresa. Pela positiva, diga-se. Mesmo os que, como eu, se julgam prevenidos contra os preconceitos, a eles não são completamente imunes.

Para os brasileiros em geral, como vimos pelo recente caso da Maitê Proença, os portugueses são os ridículos heróis de anedotas imbecis – padeiros, comerciantes analfabetos – gente estúpida e ignorante que comete gafes e faz disparatadas confusões. Para os portugueses em geral, os brasileiros são sambistas, jogadores de futebol, traficantes de droga, prostitutas dos bares de alterne, gente alegre, mas sem nível cultural. Sobretudo, pessoas que falam mais depressa do que pensam.

Não nos podemos, por isso, ofender em demasia com as tontices da Maitê. Os brasileiros devem ter herdado de nós o pendor para ridicularizar o que é diferente. Ou, pensando melhor, talvez essa característica seja inerente à condição humana e não pecha exclusiva das gentes da lusofonia.

Relativamente aos cabo-verdianos, sei existir em Portugal o preconceito, a ideia de que dessa comunidade imigrante provém grande parte da marginalidade que nos atormenta. Alguma daí virá, porque entre mais de cem mil pessoas nem todas podem ser santas e sabemos em que condições muitas delas vivem. Por outro lado, muitos portugueses, quando pensam em cabo-verdianos, mesmo não os associando à marginalidade, logo se lembram dos trabalhadores da construção civil, das empregadas de limpeza. E quando aterram no Aeroporto Internacional da Ilha do Sal pela primeira vez, subconscientemente pensarão: como é que será um país de trolhas, pedreiros, e mulheres-a-dias? Pois, quem ali chegar com essa ideia, sofrerá uma profunda surpresa.

 A Ilha do Sal e o Hotel Morabeza, onde estive apenas três ou quatro dias, nada me disseram – a beleza da praia foi o que mais me impressionou. Mas depois vieram Santiago, São Vicente, Boavista – a cidade da Praia e a encantadora cidade do Mindelo (uma cidade portuguesa parada no tempo). Aí começou o maravilhamento e a paixão que desde então me liga ao arquipélago. Cabo Verde é um país lindo. Os cabo-verdianos são, no geral, pessoas amáveis e educadas. Contudo, o meu interesse por Cabo Verde começara muitos anos antes em Portugal.

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No quadro de um projecto institucional de erradicação dos bairros de lata, no período pós-25 de Abril, tive ocasião de contactar núcleos de cabo-verdianos que viviam em bairros da então chamada «cintura industrial de Lisboa» – particularmente na Pedreira dos Húngaros (Algés), nas Marianas (Parede) e no Bairro do Fim do Mundo (Cascais). Fiz muitos amigos cabo-verdianos (e não só) e pude constatar, por um lado o apego que aqueles imigrantes mantinham à sua terra e, por outro, a quase total ausência de instrumentos culturais que alimentassem esse amor.

Com o escritor Manuel Ferreira, do qual fui amigo desde 1964, pois conhecemo-nos durante o II Encontro da Imprensa Cultural, realizado em Cascais, por diversas vezes comentámos essa circunstância que na altura era gritante e que hoje em dia está relativamente superada ou, pelo menos, mitigada. Com ele preparei (na qualidade de director editorial, visto que a direcção científica lhe pertencia), uma História da Literatura Africana de Expressão Portuguesa, destinada a sair na sequência de uma História da Literatura Portuguesa.

Por motivos que ignoro, a obra, que Manuel Ferreira entregou dentro do prazo estabelecido contratualmente, acabou por não ser publicada. Estávamos em 1990. No decurso deste trabalho, falámos por diversas vezes em Cabo-Verde e na sua cultura. Foi incentivado por estas trocas de impressões que visitei pela primeira vez o arquipélago e pude confirmar, não só a ideia com que ficara pelo contacto directo com os imigrantes, como também o que Manuel Ferreira me dizia sobre a singularidade das gentes cabo-verdianas e  sobre o valor ímpar da sua cultura. Entretanto, Manuel Ferreira faleceu e, passados anos, eu saí da editora.

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Pode dizer-se que antes de Eugénio Tavares (1867-1930), não existia, mesmo entre as elites do arquipélago, em Cabo Verde uma consciência explícita da identidade cultural dos cabo-verdianos. Pode também dizer-se que, com a sua luta, criou o conceito, até então inexistente, de caboverdianidade. Este foi o primeiro e importante passo. Assente esse pilar da dignidade nacional, a cultura cabo-verdiano, sobretudo a literatura, divide-se em duas épocas distintas – antes e depois da revista Claridade. Em Março de 1936 surgia o primeiro número; em Dezembro de 1960 publicou-se o último. Foram dez números o que, em 24 anos não parece muito, sobretudo se analisarmos esse facto à luz da realidade actual.

No entanto, não podemos esquecer que, em 1936, ano em que foi desencadeada a Guerra Civil de Espanha, o governo de Salazar tentava limpar o País dos derradeiros resíduos da democracia que, desde o advento do liberalismo, e com breves interregnos, se vivia em Portugal. As colónias não escapavam a essa limpeza metódica que, procurando erradicar tudo o que cheirasse a vestígios de hábitos democráticos, fazia também desaparecer nichos culturais que, à gente do regime e ao ditador, pareciam ser (e, de facto, eram) refúgios das oprimidas ideologias políticas.

Os primeiros «claridosos» foram os escritores Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes. Aos nomes dos três fundadores vieram juntar-se, entre outros, os de Félix, Monteiro, Henrique Teixeira de Sousa, Arnaldo França, Tomaz Martins, Nuno Miranda, Luís Romano, Abílio Duarte, Virgílio Avelino Pires, Onésimo Silveira, Xavier Cruz, Artur Augusto .

O conteúdo dos dez números, algo heterogéneo (ou ecléctico, se preferirmos), permite estabelecer afinidades com o movimento neo-realista que, em Portugal, velejava a todo o pano por esses tempos. Afinidades que também teve com a literatura brasileira. Em todo o caso, mantendo sempre a inclusão de textos em crioulo, poemas sobretudo, apesar de o português ser dominante, a «Claridade» conservou, ao longo da sua existência, um carácter de genuinidade autóctone.

Não pretendo com esta crónica esgotar este tema ou sequer abordá-lo com a profundidade que merece. Aliás, existem sobre o tema estudos de grande qualidade, nomeadamente os de Manuel Ferreira e os de Alfredo Margarido. Quis apenas chamar a atenção para este marco da cultura do povo irmão de Cabo Verde – a revista «Claridade», um farol de cultura de um arquipélago, onde existe agora uma literatura fecunda com nomes como os de Germano Almeida, Aguinaldo Fonseca, Yvone Ramos, Corsino Fortes, Arménio Vieira, Yolanda Morazzo, Gabriel Mariano e tantos outros.

A «Claridade» lançou uma luz intensa e duradoura sobre o arquipélago.