Da fractura do fémur aos apoios sociais

A antropóloga Margaret Mead afirmou, certo dia, que o primeiro sinal de civilização humana era um fémur humano com sinais de uma fractura curada – um achado arqueológico com cerca de 15000 anos. Mead explicou que, para que tivesse havido essa cura, houve pelo menos uma pessoa que perdeu tempo a tratar de outra. Se um animal sofrer uma fractura no mundo selvagem, acabará por morrer.

O meu cinismo sussurra-me ao cérebro uma série de possibilidades menos simpáticas, como a de um canibal que curou uma refeição para melhor a engordar, mas, seja como for, acredito que a humanidade reside neste combate quotidiano contra o predador que também somos – se, de um lado, temos esta solidariedade ortopédica, temos de lembrar a frase “O homem é lobo do homem”, presente na Asinaria, de Plauto.

Humanidade será, então, solidariedade, o que quer dizer que a sua ausência é selvajaria.

Há quem ponha Deus no seu lema, preferindo, talvez, o do Velho Testamento, essa figura castigadora e terrível, que chegou ao ponto de afogar a maior parte da humanidade, por considerar que as pessoas eram demasiado defeituosas. O Novo Testamento, cuja personagem principal, Jesus, tem a mania de dizer àquele que nunca pecou que atire a primeira pedra ou de ajudar os desvalidos (antepassados decerto dos beneficiários do RSI), transmite uma mensagem que alguns considerarão laxista, fraca. Num debate com Jesus, André Ventura perguntar-lhe-ia se não tinha vergonha de se ter deixado crucificar com um ladrão de cada lado, mostrando-lhe uma pintura do Gólgota. Já os ricos não terão de preocupar com o buraco da agulha ou com o pagamento de impostos; dos pobres poderá ser o Reino dos Céus, mas nunca o Rendimento Social de Inserção.

Numa sociedade civilizada, humana, ajudar os mais fracos é um dever. Nesta mesma sociedade, não se pode abandonar alguém que fracturou o fémur ou que não tenha meios para se sustentar. Haverá sempre o perigo do parasitismo, mas há valores antigos como o da presunção da inocência, início de um caminho difícil, porque fácil é acusar sem provas. Seguir este caminho não é ser de esquerda ou de direita, é ser decente.

Quem disparar acusações a torto e a direito, atirando lama sobre aqueles que recebem apoios sociais, com o único objectivo de recolher uns votos, ainda tem um longo caminho a percorrer até chegar às fronteiras da humanidade. Não terá uma fractura, mas é uma fractura. Temos o dever de ajudar também quem pensa assim, não lhe entregando votos.