‘Nasci solo muori solo, il resto è un regalo…’*
ou ‘It was terrible, terrible… still it was good’**
ou ainda Este é o (meu) sangue
Fotografia: Tarik Samarah
Este postal começa ao contrário. A ordem das fotografias também está ao contrário. O mundo esteve (está) demasiadas vezes ao contrário, tornando-se o mal banal. A indiferença também. Afinal não é assim tão diverso.Eu hoje chorei. Porque vi o mal e me lembrei que o esquecera. Este mal. Sei que agora mesmo há outros, semelhantes, até nas razões. Sei também que muitas vezes, de forma mais ou menos (in)voluntária os vejo com distância, ou com indiferença, não sendo o mesmo, é. Eu hoje chorei e isso, na verdade, pouco tem de assinalável.
A mão aberta, com uma gota de sangue no dedo anelar pertence a uma mulher. Viva. Que testemunhou o mal como eu, vocês, ou seja, como a maior parte de nós nunca há-de testemunhar. A gota de sangue desta mulher serviu para determinar o dna dos corpos encontrados em valas comuns perto de Srebrenica e as relações familiares com os vivos. Mais de 8000 mortos, homens entre os 12 e os 77 anos. Arrancados às suas mulheres e mães, que uma década ou mais passada estendem as suas mãos, as suas gotas de sangue nos seus dedos anelares, em busca do único conforto possível: enterrar os seus filhos, maridos e pais.
Acabei o dia na Galerija 11/07/95. Nela estão patentes duas exposições. Uma é a exposição permanente, com fotografias extraordinárias, violentamente comoventes, de que faz parte esta impressionante fotografia da mão de uma mulher que procura, com uma gota de sangue, um lugar onde enterrar a dor e chorar. Uma é, então, sobre o genocídio de Srebrenica (a galeria é dedicada a este lugar e ao massacre mais violento da história da Europa, depois da 2ª Guerra Mundialª), com fotografias deTarik Samarah. A outra exposição (temporária) é sobre o cerco de Sarajevo, com fotografias de Paul Lowe (o cerco de Sarajevo foi o mais longo na Europa, também depois da 2ª Guerra Mundial). Há ainda um documentário, de Bill Carter, sobre este cerco: Miss Sarajevo ***. E há, finalmente, o que me fez chorar, o documentário ‘Srebrenica’, onde imagens de 1995, julho, data do massacre (entre 6 e 11) e imagens posteriores (a maioria do final dos anos 90, início dos anos 2000) nos mostram, sem que o mostrem de facto (o que é pior), o mal.
A maior parte das pessoas que fala no filme são mulheres. As viúvas, as orfãs, as mães a quem mataram os filhos. Algumas delas perderam, naqueles dias, todos os homens da família. Contam coisas pequenas, quero dizer, pessoais. Uma descreve a mão do marido a tremer sobre o seu ombro no minuto derradeiro em que se viram. Outra, a cor dos olhos do filho, com tal detalhe que é impossível não chorar diante daquele olhar verde azeitona, com reflexos dourados, que não vemos e vemos, afinal, tão bem. Outra ainda, a quem morreram 5 homens (marido e filhos) diz, a chorar, ‘it was terrible, terrible… still it was good’**, lembrando-nos o essencial. A vida de quem sobreviveu ao mal e, apesar dele, consegue viver.
Não são atrizes, estas mulheres. São pessoas como nós. O mesmo sangue. Algumas ainda esperam que a gota de sangue tirada do seu dedo anelar sirva para identificar os restos mortais que ainda, tantos anos passados, se descobrem em valas comuns. Todos os anos, a 11 de julho, se faz um funeral coletivo, dos corpos entretanto encontrados. Já passaram 20 anos. Mais de 2000 pessoas continuam por encontrar. À entrada da Galeria há um muro com os 8372 nomes pelos quais já ninguém responde. Em Srebrenica um longo cemitério, longo como a dor destas mulheres, uma dor que nunca mais acabará de morrer.
A Guerra na BiH é complexa demais para contar num postal, ou de qualquer outra maneira. Lembro-me dela, já tinha mais de 20 anos, eu. Li depois alguma coisa sobre ela, por exemplo o ‘Safe Area Gorazde’, de Joe Saccoº. Também Srebrenica foi declarada uma ‘Safe Area’, acolhendo milhares (mais de 50000) de Bosniaks (muçulmanos)… até que julho de 1995 aconteceu e o Exército Bósnio-Sérvio entrou na pequena cidade, espalhando o mal. Anos mais tarde, no Tribunal de Haia, muitos dos generais e comandantes deste exército haveriam de ser condenados por crimes de guerra.
Estive três horas na pequena Galeria. Em vez de ir a Gorazde, quero ir, segunda-feira, a Srebrenica, que fica a 180 km de Sarajevo. Quero ir ver o longo cemitério. Contra o esquecimento do mal. Deste e de todos os outros que ainda há, agora mesmo.
A BiH tem ainda hoje marcas muito visíveis da guerra que acabou há 20 anos. Marcas de balas nas fachadas de muitos (demasiados) prédios. Marcas no pesado (mesmo, ou sobretudo, financeiramente) sistema político-administrativo. Por exemplo, não há um presidente, mas uma presidência com 1 representante dos Bosniaks, dos Sérvios e dos Croatas. E isto multiplica-se a todas as escalas de governo e administração. Neste momento existem na BiH, 50 partidos políticos. Governar é apenas possível através de múltiplas coligações.
Marcas ainda no modo de ser das pessoas, no instável equilíbrio entre a gentileza e a desconfiança, a aspereza e a doçura. Marcas nos edíficios quase abandonados (como o museu nacional, fechado por falta de dinheiro), ou desertos (como a estação dos caminhos de ferro de Sarajevo, deserta porque praticamente não há comboios devido à destruição das linhas), ou recuperados (mesmo se mal) com o apoio da União Europeia ou outros organismos internacionais, ou, finalmente, construídos de novo numa arquitetura absolutamente moderna (como a Avaz Twist Tower, o edifício mais alto de Sarajevo, ou o Parlamento). Marcas no sistema de transportes públicos. Os elétricos, por exemplo, são todos doações de países vários. São encantadoramente antigos, vistos por fora – até há um cor-de-rosa às bolinhas – mas muito desconfortáveis, mal-cheirosos e estragados por dentro.
Apanhei, justamente, o elétrico nº 1 esta manhã, entre a Ponte Latina e a estação ferroviária. Um percurso longo que fiz a pé, no regresso. Parei, assim, em muitos sítios, enquanto procurava (e encontrei) o Ars Aevi – o Museu de Arte Contemporânea de Sarajevo – onde fui a única visitante e onde o único vigilante não me vigiou e me ofereceu um livro e conversou comigo sobre problemas comuns à BiH e a Portugal, no que à cultura e à ciência diz respeito. E ao dinheiro, claro. E me contou factos e estórias de Sarajevo, dos buracos das balas nas fachadas dos prédios, ainda, do sangue que é o mesmo em todos nós, do presente que é o intervalo entre a solidão em que nascemos e a solidão em que havemos de morrer.
* ‘nascemos sós morremos sós, o resto é um presente’
** ‘foi terrível, terrível… mas ainda assim foi bom’ (uma mulher de Srebrenica sobre o genocídio e o facto de, apesar de tudo, estar viva)
ª http://galerija110795.ba/en/srebrenica/ (no site há alguma informação sobre o antes, o durante e o depois do genocídio)
*** Miss Sarajevo é também uma cançäo dos U2 (http://www.youtube.com/watch?v=Xh_AQUYvRvg). Bono foi, aliás, um dos produtores do documentário.
º Joe Sacco é um repórter-cartoonista. Ou seja, faz as suas reportagens através de Banda Desenhada. Acho-o genial e tenho todos os seus livros. Além de ‘Safe Area Gorazde’, Sacco tem ainda sobre BiH: ‘War’s End – Profiles from Bosnia 1995-1996’. Recomendo, também, pelo óbvio (ou não): ‘Palestine’ e ‘Footnotes in Gaza: a graphic novel’ (mais informações sobre Joe Sacco e os seus livros aqui: http://www.amazon.com/Joe-Sacco/e/B001K7T7NI)
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Notas:
* ‘nascemos sós morremos sós, o resto é um presente’
E a barbárie (consentida pela UE também, pois claro) tão pertinho de nós, mas suficientemente longe para que as consciências se apaziguem.
Beijos.