O que dizer deste livro?

Para comemorar os cem anos da Revolução Russa, decidi-me a ler um livro que, segundo um amigo marxista, era o preferido da CIA. A responsabilidade desta leitura não deve ser atribuída apenas à Revolução, mas também a George Steiner que me despertou a curiosidade pela figura de Pasternak quando nos conta a história que relato neste texto que escrevi, após um simpático convite do Pedro Correia.

Yuri Andreevitch Jivago é nos apresentado em criança a chorar a morte da mãe. Abandonado pelo pai, o rapaz é entregue a um tio e a amigos que o sustentam e educam. A facilidade com que ele escapa à pobreza contrasta com a vida difícil de Larissa após a morte do pai. Apesar dos avisos sobre a quantidade de personagens que romances russos contêm, Doutor Jivago centra-se sobretudo nestas duas personagens. Ligados, desde a juventude, por uma série de coincidências lamentáveis, Larissa e Yuri vivem paralelamente numa Rússia dividida por extremas desigualdades sociais, até que se encontram na Primeira Guerra Mundial, onde a igualdade da situação – a morte num campo de batalha é para todos – os une.

Ainda assim, apesar da proeminência destas duas personagens, é muito difícil definir Doutor Jivago como uma história de amor. Uma das condições essenciais para qualquer história de amor clássica é a unicidade e a eternidade. Ama-se só uma pessoa e ama-se para sempre. Outra das condições é a centralidade do enredo amoroso. Nada disso acontece aqui. Larissa ama Jivago mas também ama Pavel Pavlovitch Antipov. Jivago está apaixonado por Larissa, mas é indiscutível que também ama a sua mulher, Tonya, e no fim ainda consegue ter duas filhas com Marina em Moscovo.

Não, Doutor Jivago não é uma história de amor. Nem é uma história de guerra. Nem é uma história sobre um poeta perdido no caos à espera de inspiração. E não é, sequer, uma história sobre a desigualdade que desemboca, pelas circunstâncias da época, na igualdade amorosa e romântica, quase idílica. Doutor Jivago é, simplesmente, um livro sobre a falibilidade humana. E é, sobretudo, um manifesto de neutralidade numa altura em que esta era verdadeiramente impossível. Apesar de estar contra a Revolução de Outubro, Jivago não rejeita completamente os princípios que começaram por a motivar. Ele rejeita, sim, a forma brutal e cruel que eles assumiram ao longo do processo revolucionário. Ele rejeita a practicabilidade dos princípios e não necessariamente a sua validade. Colocado de outra forma: O problema não é uma sociedade sem classes, mas sim o que o processo de construção de tal sociedade implica para o carácter dos indivíduos. Se Jivago é Pasternak isto não deixa de ser uma forma inteligente de por a questão nos anos 50 do século XX.

O que Yuri Andreivitch Jivago diz a quem o quer ouvir é que a resposta menos simples é normalmente é a mais correcta. Que qualquer era de extremos produz a irracionalidade e desumanidade e que nós não temos de nos resignar a isso só porque as circunstâncias o exigem. E Yuri Andreivitch, de uma sensibilidade quase irritante e repleto de falibilidades e indecisões atrozes simboliza, mais do que qualquer outra coisa – o amor, a poesia, a política – o triunfo do individualismo perante a tirania do totalitário.

Comments

  1. Luís Lavoura says:

    Belo post. Muito bom.

  2. Catarina says:

    Obrigada. É agradável ler uma coisa sensata nos tempos que correm. Sempre que releio o livro o revejo o filme penso nisto: não somos obrigados a estar de acordo com o que vai contra a nossa consciência. Isso pode custar-nos a vida, mas não somos obrigados a concordar. E todos somos imperfeitos.

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