Oito apartamentos e um sótão (4)

Segundo esquerdo

 

Azeredo Conceição sentira, desde jovem, o chamamento para o exercício de administrador de condomínio. Sempre estivera acima do comum dos condóminos, como se tivesse sido concebido sem mácula por um espírito santo do imobiliário para ser um senhor feudal ungido por Deus para comandar os vizinhos. Tudo o que se passava no prédio era da sua competência e a incompetência era tudo o que caracterizava os outros. Não havia nada que ficasse imune à sua opinião – era-lhe impossível não comentar o facto de alguém se esquecer de limpar os pés à entrada do prédio, batia à porta das outras casas para recomendar que recolhessem a roupa do estendal, criticava a permanência de um guarda-sol num lugar de garagem por constituir um atentado à decoração do imóvel e exigia que todos respeitassem o horário das suas sestas de fim-de-semana, desligando televisões e calando crianças. Para reforçar a sua importância, Azeredo não tinha mulher, tinha esposa, e a sua filha haveria de ser doutora, estatuto reservado a alguns médicos.

Quando o vírus inventou o confinamento, Azeredo viu aí claramente visto um sinal de que o mundo, ou seja, o condomínio, precisava da sua mão forte e urdiu um plano completo que iria comunicar brevemente ao condomínio, isto é, ao mundo. Passou a usar a palavra “pandemia” cerca de dez vezes por hora (um condómino mais atrevido fizera mesmo referência a isso – “Ó senhor Azeredo, consigo, a pandemia anda a dez à hora!”, numa piada que só era entendida por outros dois vizinhos, o que Azeredo entendia como um desrespeito à sua autoridade). No computador, com a ajuda da esposa e da futura doutora, concebeu planos, decretos e mapas, exigindo aos condóminos comportamentos morais irrepreensíveis, criando formulários para comunicações de saídas e entradas e marcando no chão os caminhos de ida e volta que permitiriam manter o distanciamento social.

Se a fiscalização já era sufocante antes da pandemia, a permanência de Azeredo a tempo inteiro no prédio tornou-o ainda mais ubíquo, denunciante, polícia e juiz. A certeza nas suas virtudes levava-o a não tomar consciência de que as suas ordens eram completamente ignoradas. Uma vizinha mais nervosa chegou a ter um ataque de riso incontrolável quando Azeredo, de decreto na mão, declarou praticamente inconstitucional a marca de pensos higiénicos que tinha comprado.

A esposa e a futura doutora, apesar do hábito da obediência, também se sentiam crescentemente pressionadas pela obsessão perfeccionista de Azeredo. Na porta da cozinha, estava afixado um horário completíssimo que incluía dez minutos para secagem da louça à mão. No interior da porta do roupeiro do quarto de casal, havia um plano de actividades íntimas, que nunca poderiam ser antecipadas ou adiadas, “porque temos de dar o exemplo.”

As saídas para ir às compras implicavam movimentações rigorosas, dignas de um exército altamente treinado, e vários planos de contingência. Azeredo fazia-se acompanhar, alternadamente, da esposa e da futura doutora, porque precisava de ter a certeza de que a lista de compras não era desrespeitada. Por outro lado, pesava-lhe que o seu prédio ficasse desamparado durante a sua ausência. Assim, a esposa ou a futura doutora ficavam com a espantosa responsabilidade de vigiar o condomínio e de apresentar um relatório quando estivessem novamente reunidos.

Um dia, como tem de acontecer em todas as histórias, Azeredo voltou mais cedo das compras, na companhia da esposa: a ausência de três “itens” da lista das compras encurtou a saída. Quando reentraram em casa, cumprindo o silêncio regulamentar, aperceberam-se de ruídos vindos da sala. Entraram. No sofá, a futura doutora e o namorado dedicavam-se a actividades íntimas não previstas nos regulamentos. O jovem casal, sem tempo para reagir, manteve a posição, enquanto Azeredo protestava:

  • Ó filha, então e o distanciamento social? O que é que os vizinhos vão dizer, nestes tempos de pandemia?

Comments

  1. fernando tavares says:

    Muito bom Parabéns

  2. Fernando Martins says:

    Apenas um reparo: esperar-se-ia uma reacção mais viva da parte do pai ultrajado. Esta admoestação indicia uma inesperada condescendência.

    • Filipe Bastos says:

      Fica sempre mal tentar explicar as piadas, mas esta está aí: em vez de explodir como se esperava de um pai, o obcecado e neurótico Azeredo preocupa-se apenas com o regulamento.

      Não obstante, também achei o fim um pouco underwhelming: podia talvez explodir e só depois explicar porquê.

      E imaginei logo o Azeredo como o chuleco da Defesa; não só pelo nome como pela atitude. Um esterco completo.

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