Merkel terá mesmo potencial?

Trata-se do gigantesco acordo comercial conhecido sob o lema “carros por comida”, prenhe da lógica comercial insustentável que tem sido seguida a passo estugado pela UE nos últimos anos, em estridente contradição com os anúncios “verdes” da mesma UE.

É o acordo que vai contribuir para

  • o agravamento da crise climática,
  • a devastação das florestas tropicais e da biodiversidade sul-americana,
  • o aumento de atentados aos Direitos Humanos,
  • novos ataques à produção agrícola na Europa (sobretudo de pequenos produtores),
  • a acentuação de assimetrias e vulnerabilidades
  • a redução de padrões de saúde
  • o ataque aos direitos dos trabalhadores,
  • o aumento do sofrimento animal e, como é hábito,
  • é um acordo que resulta de um processo pouco transparente e contribui para esvaziar a democracia por via da harmonização regulatória em comissões técnicas sem escrutínio e com forte influência de lobistas.

A despeito de tudo isto, bem como dos muitos protestos da sociedade civil e de moções contra o acordo UE-Mercosul aprovadas nos parlamentos da Holanda, Áustria e da Valónia, os governos dos países-membros – com a Alemanha e Portugal na linha da frente – estão determinados a levar por diante a conclusão do acordo, de preferência já durante a actual presidência do conselho da UE, que a Alemanha assume até ao final do ano. [Read more…]

Oito apartamentos e um sótão (9)

Sótão

 

Ando há muitos anos na construção civil, gosto de participar na construção de prédios, gosto de ver nascer apartamentos, imaginar que ali vão viver pessoas, comparar os espaços vazios com a decoração escolhida e confirmar que somos todos diferentes ou que somos previsíveis. Conheço os prédios melhor do que as pessoas que lá vivem, conheço cada canto dos apartamentos.

Este sótão, por exemplo. Ninguém vem aqui. É preciso saber que há uma escada escondida que é preciso puxar, fixar, subir sem apoios, realizar acrobacias que já não são para todos. Mesmo eu, que ainda não sou propriamente velho, sofri para chegar aqui.

Confesso que também tenho chaves que abrem as portas dos apartamentos. Muitas vezes, entro nas casas, quando não está ninguém. Também entro quando sei que as pessoas têm um sono mais profundo. Eu sei que seria o suficiente para ir preso, mas juro que nunca roubei nada, juro que nunca me aproveitei de ninguém. Talvez seja mais correcto dizer que não roubei nada que faça falta ou que seja material. Sim, tiro uma ou outra fotografia, anoto frases nuns cadernos velhos, colecciono sons que vou gravando, guardo pequenos vídeos.

Às vezes, faço consertos que não dêem muito nas vistas, que é uma maneira de pagar o espectáculo da vida alheia. Já lhe aconteceu a torradeira avariar de manhã e funcionar à tarde ou a chave entrar melhor numa fechadura que só estava a precisar de um bocadinho de óleo (ou de azeite, como me ensinou o meu avô, que era marceneiro)? Posso ter sido eu. Não tem nada que agradecer.

Não preciso de arrendar ou de comprar casa. Vou mudando de sótão. Um colchão, um fogareiro eléctrico, umas conservas e aqui está o porto de abrigo, a torre de vigia, a vida dos outros como minha.

Tenho esta mania desde pequeno: ver sem ser visto. Em casa, gostava de me esconder dos meus pais e compreendi que é tanto o que escondemos que só podemos ser verdadeiramente conhecidos por quem nos espiar. Há coisas que preferia não ter sabido e outras que me foram muito úteis.

Nessa altura, enquanto me escondia em casa, mostrava-me na rua: contava aos meus amigos as minhas façanhas de espionagem caseira. Quando me lembro dessas narrativas, apercebo-me, no entanto, de que não lhes contava verdadeiramente aquilo que via, preferindo romancear. Curioso: tinha acesso à verdade e preferia contar mentiras.

Depois de ter participado na construção deste prédio, instalei-me, então, aqui, neste sótão, como já disse. Quando o vírus se tomou conta do mundo, já eu estava confinado a maior parte do tempo. É certo que passei a ter o cuidado de me desinfectar e de usar máscara quando passeava pelo prédio, porque não queria contaminar ninguém.

O facto de toda a gente passar mais tempo em casa também fez com que redobrasse a minha invisibilidade, aumentasse o silêncio. Pude, então, ver ainda mais, conhecer melhor todos os vizinhos. Enchi os cadernos de vícios e de virtudes, fragmentos, pedaços, fatias de pessoas, juntei memórias e impressões, emocionei-me com gestos, senti vontade de intervir, mas isso está vedado a fantasmas ou a viajantes do tempo.

Não se passa impunemente por uma quarentena, mesmo aqueles que, como eu, já a praticavam. Senti-me outra vez criança e preciso de contar, de dar forma a estes apontamentos, de mostrar as pessoas de quem me escondi, as pessoas que se escondem.

São tantas as histórias que tenho pena de não ter contado: Beto Estrela, o artista pimba que obrigou a rua a ouvir o grande sucesso “Cor no cotovelo”; a mulher com fama de ninfomaníaca e tanta falta de proveito; o pintor impedido de ir ao estúdio que descarregou as tintas e as ideias na parede de casa e que continuou pelo interior do prédio; o homem que descobriu que era marido e pai, depois de estar adormecido tantos anos. Tudo nos obriga a esconder ou a revelar qualquer coisa.

Decidi escrever estas oito histórias. Se me perguntarem se são verdadeiras, não saberei responder-vos. O prédio existe, os apartamentos também, as pessoas de certeza.

Estou de saída. Há outra obra a começar. Meto tudo na mochila e sacudo o pó. Olho para as calças. Nunca se consegue sacudir o pó todo.