Lógica e coerência

É bom pôr tudo em causa. Nem que seja por uma vez para cada tema, devemos questionar mesmo o que parece irrefutável. Mas, caramba, isso é apenas um processo. Um processo que aumenta a nossa lucidez, mas apenas um processo. Não pode nem deve ser um estado “ad aeternum”.

Onde quero chegar? À certeza que para debater algo é necessário que entre os dois (pelo menos) interlocutores existam mínimos éticos comuns. Podem ser muito mínimos, mas têm de existir. Têm de concorrer valores básicos de coerência e lógica. Se isso não acontecer, a discussão nunca acrescentará nem elucidará, rigorosamente, nada. Pior, só permitirá ao lado transgressor (se só houver um) iludir a falta de razão.

Neste momento em Portugal, na discussão política, é exactamente esta a situação que vivemos. Um dos lados, a esquerda, prescinde de qualquer estrutura lógica e de qualquer constância coerente.

Antigamente, o anacronismo básico, era qualquer coisa como: o comunismo que defendemos não é o soviético, nem o coreano, nem o chinês. É mais um comunismo como na Suécia. Além de se terem esquecido de rasurar os próprios programas políticos que desnudam aquele argumento sem sentido, ainda os hei-de ver a defender um comunismo como o do Reagan.

Mas agora, é tudo isso mas em mau e em grande.

A sanha contra um autoritarismo (fascismo), muito mais imaginário que real, através da defesa de processos todos eles muito, mas muito mais autoritários que o fantasioso despotismo que pretendem combater.

A luta contra a discriminação (racial, de género, etc.) que causa muito mais discriminação que a que pretendem evitar. O processo é tão, tão mau que além de ser ele próprio tremendamente injusto para as não vítimas, consegue que estas, por incrível que pareça, fiquem ainda mais discriminadas.

Os exemplos são muitos. A minha vontade era dizer que qualquer coisa que tenha sido dito pela esquerda carece de mínimos de lógica ou de coerência. Mas há, neste momento, uma questão em que esse paradoxo atinge o zénite: as aulas de cidadania.

Não vou discutir a ténue fronteira entre instrução de cidadania e a reconfiguração ideológica. Não vou discutir o facto do Estado estar a imiscuir-se em áreas que não deve. Não vou discutir que seja uma entidade que, manifestamente, não é uma pessoa de bem (porra, estamos a falar do Estado, estamos a falar do governo, estamos a falar do ministério da Educação) a tentar ensinar o que ela própria desconhece. Não vou discutir nada disto.

Mas a objecção de consciência???? Como é possível a esquerda ser contra a objecção de consciência???? O estupor que isto me causa, vai muito para além do imaginável. Pior que a capacidade de qualquer esquerdista ser capaz de se manifestar contra a objecção de consciência sem corar de vergonha, é o estado de coisas que esta indecência traduz: uma situação (no sentido contrário a oposição) tão pouco escrutinada, tão pouco posta em causa que, ela própria, se confunde com unanimidade e se permite ficar em “roda livre”. Depois o salto é fácil. A ideia de poder absoluto, para as gentes pequenas, traz, inerentemente, a ideia de impunidade. Por isso, coerência, lógica, convicções ou principios são pormenores que deixam de ter importância.

Comments

  1. Rui Naldinho says:

    Estaria de acordo com este artigo, mesmo discordando dele no essencial, mas vá lá, no sentido do absurdo, se porventura toda a construção do normativo jurídico português, por exemplo, já nem falo nos costumes, do campo à cidade, dos bancos da escola ao estado adulto, do início da vida activa à aposentação, da vida profissional à vida mundana, no acesso aos lugares de chefia, na cultura, no desporto, no casamento, nos direitos cívicos, enfim, tanta coisa, não tivessem todos eles sido construídos por uma sociedade conservadora, machista, elitista, de direita, apoiada sempre pelas várias visões eclesiásticas do momento, da igreja, vulgo ICAR. Tudo nos foi imposto com a bênção divina do capital e de um Deus, na pessoa da cúpula do clero e do poder económico. Aquilo a que usaram denominar por doutrina social da igreja, que de social tem muito pouco, e de racional quase nada. Essa foi a cidadania que me impuseram, com aulas de religião e moral, na escola primária e no liceu, com a disciplina curricular, durante um ano lectivo, de “Organização Política e Administrativa da Nação”.
    Uma das razões para o desenvolvimento de um conjunto de doutrinas filosóficas e económicas, todas elas assentes no anticlericalismo, no ateísmo, e predominantemente anticapitalistas, devem-se precisamente à rejeição que se foi construindo de forma violenta e ruidosa por vezes, ou silenciosa noutras, nas nossas sociedades, contra essa fórmula de cidadania construída primeiro pela monarquia e posteriormente pelo fascismo. Nada do que se passou até aqui se deveu ao acaso.
    Toda a visão de cidadania do passado recente e remoto, teve sempre uma forte componente moral e ética assentes no catecismo autoritário da igreja e do poder da elite económica vigente, que nos impunha a castidade, a pobreza e a modéstia, como virtudes. Já ela, igreja e classe dominante se pastoreavam com as delícias da líbido, seja nos prazeres da carne, seja nas orgias materiais e gastronómicas. Não lhe faltavam abortos e filhos bastardos. Nem as caganeiras a seguir aos banquetes.
    A objeção de consciência é e será sempre contra quem quer coarctar a minha liberdade de escolher o meu futuro, seja como ser racional, com direitos básicos elementares, como o da minha própria subsistência, por exemplo, como a da minha orientação sexual, outro exemplo, como o das minhas opções políticas, como o da minha defesa pessoal contra um agressor, seja ele físico ou psicológico. Todas as outras objecções de consciências que saem fora deste quadro, são uma espécie de “fait divers”, que tentam confundir o essencial do acessório.

  2. Filipe Bastos says:

    No geral concordo com o Naldinho: herdámos uma cultura, valores e costumes doutrinados por padrecas e impostos por mamões.

    É saudável tentar contrariar isto na escola, ensinando aos miúdos que há alternativa ao mantra vigente de egoísmo, consumismo e carneirismo que os mamões e seus lacaios nos impingem todos os dias, para que sejamos hamsters bem comportados na rodinha do nosso emprego, até que a velhice e o covidas nos levem.

    A chatice é que a esquerda conseguiu fazer tanta, mas tanta trampa pelo mundo desde 1917 – mesmo descontando toda a propaganda americana – que a carneirada votante, com certa razão, não lhe dá confiança. E não serão estas disciplinas da treta a mudar isso.

    O Osório pode ser um direitalha, mas é verdade que a hipocrisia esquerdista, a sua vitimização e obsessão politicamente correcta, a sua ‘interseccionalidade’ e ‘micro-agressões’ só afastam as pessoas. Assim jamais iremos lá. Os mamões e os Osórios agradecem.

    • Paulo Marques says:

      É normal, custa perder privilégio. E, no entanto, vai-se acabando com ele, passo a passo.

      • Filipe Bastos says:

        É. O meu pai, branco, operário com a 4ª classe, um entre oito filhos, que começou a trabalhar nas obras aos 14 anos para ajudar em casa, sempre me disse: filho, temos de nos agarrar ao nosso privilégio.

        A minha mãe, branca, que trabalhava em dois empregos das 06h às 20h, mais duas horas nos transportes, também me explicou: filho, temos de oprimir os pretos e os transexuais para manter o nosso privilégio.

        Claro que é um choque perdermos tanto privilégio. Mas se assim os oprimidos Jay-Z e Beyoncé, pretos, puderem comprar mais uma ilha, ou o Elton John, gay, puder trocar de Bentley, ou a pobre Joacine, essa vítima do ‘racismo institucional’, puder continuar a mamar no paralamento, então paciência: é o mundo a evoluir. Passo a passo.

        • Paulo Marques says:

          O privilégio é relativo, ninguém diz que as minorias são as únicas exploradas pelo capital. Mas ao menos podem andar na rua sem ter constantemente alguém a mandá-los para a suposta terra, porque isto (https://twitter.com/KagroX/status/1299779439954464768?s=20) é diferente disto (https://twitter.com/KagroX/status/1299779623765585920?s=09).
          E ser rico não protege https://twitter.com/RexChapman/status/1299413653880549382?s=20

          • Filipe Bastos says:

            Só hoje vi esta resposta. Que raio têm estas tretas americanas a ver connosco? Acha que Portugal e EUA são parecidos? Sobretudo nas relações raciais?

            Ser rico não protege… estará a gozar? Um futeboleiro milionário a entrar na sua casa milionária? Coitadinho!

            A lógica da ‘nova esquerda’: a grande maioria da população – e do eleitorado – é branca, pobre, chulada e explorada. Não faz mal: são brancos! Só importa que não os mandam para a terra deles… já lá estão.

            Se virmos bem, até merecem: são todos uns racistas, misóginos, islamofóbicos, nojentos. Né, Paulo?

  3. Luís Lavoura says:

    Como é possível a esquerda ser contra a objecção de consciência????

    A objeção de consciência não é um direito infinito, que se aplique a toda e qualquer atividade ou situação. É um direito que está codificado, para certas situações específicas.

    • Manuel Lopes says:

      Absolutamente de acordo
      Aliás em matéria de aborto à muito que a esquerda contesta o argumento da objeção de consciência por parte dos médicos.
      É a LÓGICA E COERÊNCIA do autor

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