Liberdade iliberal

Nos EUA, a liberdade é um conceito que apenas encontra a plenitude na selvajaria económico-especulativa. Ou nas áreas controladas por lobbies poderosos, como a venda e porte de arma, que, como sabemos, nada tem a ver com o abundância de tiroteios mas ruas, escolas ou eventos públicos.

Liberdade, na perspectiva do neoliberalismo ultraconservador norte-americano, é mais ou menos isto: és livre para criar empresas, para pagar poucos impostos e para andares na rua armado em cowboy com perturbações mentais. É uma nação de tal forma livre, que pode livremente invadir outras nações, destruí-las irremediavelmente, com múltiplas violações do direito internacional e crimes de guerra, e de seguida tomar conta dos seus recursos, perante uma calorosa standing ovation dos mesmos que agora rasgam as vestes pela Ucrânia, e que muito provavelmente me acusarão de putinismo por esta referência, que espírito pulha-pidesco vive dias de glória. Podem ir directos para o caralho que os foda, sem passar na casa partida e sem receber dois mil escudos.

Já o aborto, e outras heresias que desafiam as convicções religiosas e o marketing que serve de base retórica para o ultraconservadorismo bacoco dos donos da Land of the free, ou que ameaçam o status quo do radicalismo religioso que tem muita força, ficam de fora dessa liberdade de fachada que não passa de uma farsa. Uma farsa onde um puto de 18 anos pode comprar uma semiautomatica mas não pode legalmente beber um cerveja. Uma farsa onde se investem triliões em Defesa, todos os anos, mas aí de quem venha com ideias de extrema-esquerda como saúde ou educação públicas. Uma farsa onde burocratas controlados por fundamentalistas religiosos, vendedores de indulgências e de calcitrin nas televendas, impõem a sua vontade sobre os corpo das mulheres, que, na autoproclamada terra da liberdade, correm agora o sério risco de perderem direitos sobre os mesmos. Com um farol destes, não admira que monstros como Putin tenham a força que têm. Mais cosmética, menos cosmética, é tudo farinha do mesmo saco a que eufemisticamente chamamos iliberalismo.

Comments

  1. Luís Lavoura says:

    O Supremo Tribunal dos EUA não pode eliminar a liberdade de abortar. Pode é dizer que tal liberdade não se encontra garantida pela Constituição federal dos EUA.
    A partir do momento em que o Supremo Tribunal o faça, a liberdade de abortar não é eliminada, fica é dependente de leis aprovadas por cada um dos Estados.
    Tal e qual como na Europa, portanto.

  2. Paulo Marques says:

    Liberdade para mim e não para ti, que não tem como interesse principal “defender a vida”. Não, todo o movimento constructivista enceta um retrocesso (selectivo, de resto, como não podia deixar de ser) a uma interpretação literal da constituição onde só há direitos para quem pode, não para quem quer.
    Usando exactamente o mesmo argumento legalista, e está na opinião da fuga, pode ser usado para, de um dia para o outro, acabar com casamentos com pessoas do mesmo sexo, recriminalizar a sodomia, e ilegalizar casamentos interraciais. E, não está lá, mas podia, a liberdade de segregar estaria reaberta. Junte-se a possibilidade de dispensar eleições para eleger representantes do estado, e está um caldo de “nossos valores” muito interessantes.

  3. Já eu não percebo em que medida é uma “convicção religiosa” entender que um feto humano viável merece maior valoração ética (e, por essa via, protecção jurídica) do que um cão – ente que, agora, é, por (cretino) consenso, sujeito de direitos. O que me faz confusão nesta discussão do aborto é o facto de ambas as partes negarem a evidência de que “o seu” direito não é absoluto, ou seja, de que o “direito à vida” do feto viável não pode impor-se aos legítimos direitos (à vida, saúde, dignidade) de quem o carrega no ventre, e de que o direito da mulher à sua autodeterminação não pode ser exercido de forma não-ética, nos casos em que ela é responsável pela forma de vida humana que gerou (para mais, vinda tal “tese” duma área política que defende que os direito individuais devem ser limitados pela sua função social). E, sim, sei que pragmaticamente, nenhuma lei que regule o exercício do aborto será cumprida, mas não percebo porque é que esse argumento – que, em Portugal, se aplica a quase todas as leis – apenas deve influenciar o modo como se legisla em matéria de aborto. PS: prova o nível de fanatismo em torno desta questão, alguém do Tribunal se ter sentido capaz de divulgar à imprensa o projecto de decisão, condicionando, desse modo, a decisão final (pois se até já o Presidente dos EUA disse que a condena, assim provando que o princípio da separação de poderes só se aplicava ao Trump).

    • Paulo Marques says:

      Convenhamos que uma decisão que atira décadas de jurisprudência de uma decisão anterior ao lixo, por nada mais que “não faz parte do nosso modo de vida”, com consequências enormes pelo resto da legalidade, não é uma decisão qualquer.
      Mas também não sei onde vai buscar o absolutismo do direito, já que nem perto disso é permitido em lado nenhum, com a interrupção pós primeiro trimestre a ser uma raridade.

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