Memória descritiva: Luta armada contra a ditadura (7) – debate com operacionais da LUAR, BR e ARA-

«O aparecimento da LUAR, fora da órbita do PCP e de outros movimentos que surgiam com conotação marxista-leninista e envolvidos nos diferendos de carácter predominantemente doutrinário, marcou, em meu entender, uma mudança qualitativa na oposição ao regime, iniciando métodos de luta que outras organizações viriam a adoptar mais tarde, como as BR e a ARA», disse Fernando Pereira Marques.

FPM – Gostaria de acrescentar um pormenor ao que disse há pouco.

CL – Somos todos ouvidos, Fernando.

FPM – Entre o núcleo fundador da Liga de União e Acção Revolucionária, estavam antifascistas que já tinham participado em outras acções com grande impacte, associadas a tentativas mais amplas de derrube do regime: Palma Inácio, além da sua participação nos anos 40 numa tentativa de golpe militar, tinha entrado no célebre desvio do avião da carreira Casablanca – Lisboa para lançar panfletos sobre a capital; Camilo Mortágua foi também um dos que realizou esta operação e esteve ainda na tomada do paquete Santa Maria. Estas acções, apesar das suas repercussões, inclusive internacionais, caracterizavam-se por se inserir na concepção de luta designada por “reviralhista”, animada por figuras como Humberto Delgado e Henrique Galvão que apostavam nessa tradição que durante muitas décadas predominara entre a oposição. [Read more…]

Memória descritiva: Luta armada contra a ditadura (6) – debate com operacionais da LUAR, BR e ARA-

«Muitas pessoas de outros estratos, como os católicos, que se tinham radicalizado por via da luta anti-colonial, aderiram às Brigadas e deram um contributo importante sem que as questões ideológicas tenham contribuído para nos afastar», disse Carlos Antunes, dirigente operacional das BR.

CL – Já agora, e embora possa parecer uma pergunta um tanto provocatória, não resisto à tentação de lha colocar – se a acção directa sempre foi condenada pelo PCP, como se explica que o Partido tenha criado uma organização destinada a conduzir um tipo de luta que reprovava?

JB – As condições históricas justificam essa contradição. Desde 1962 que a luta contra a ditadura se vinha radicalizando aceleradamente. Junto da direcção do PCP cresciam as pressões para a luta armada. Pressões exteriores decorrentes do ambiente político e pressões da própria organização. Em 1964 Álvaro Cunhal mostrou-se favorável às «acções especiais» no contexto da «luta de massas» e empenhou-se, ainda que de forma cautelosa, na criação da estrutura que as pudessem desencadear sem envolver directamente as organizações do PCP. A ARA apareceu em 1970 principalmente porque o PCP não podia deixar o espaço da resistência armada nas mãos de outras organizações como a LUAR ou as BR, que entretanto surgiam. [Read more…]

Memória descritiva: Luta armada contra a ditadura (5) – debate com operacionais da LUAR, BR e ARA-

Este debate surge na sequência (e como corolário) de uma série de quatro textos que aqui publiquei sob o título «Luta armada contra a ditadura». Nesses textos, sumarizei os movimentos mais relevantes verificados desde o 28 de Maio de 1926 até ao 25 de Abril de 1974. Numa descrição cronológica (e necessariamente incompleta) englobei os movimentos de natureza militar, os de iniciativa civil, e alguns em que ambas as componentes intervieram. Nos dois últimos textos, tentei sintetizar a acção de organizações clandestinas que, desde o final dos anos 60 e até à Revolução, desenvolveram uma série de acções de sabotagem que constituíram um elemento decisivo no desgaste de um regime fragilizado pela Guerra Colonial, pelas greves, pelas lutas estudantis e por um crescente descontentamento da população.

No arranque deste debate que ficará depois aberto a todos os leitores, vou entrevistar elementos das três organizações que até a 25 de Abril de 1974, moveram essa resistência armada – A LUAR, as BR e a ARA. São eles, por ordem alfabética, Carlos Antunes, comandante operacional das Brigadas Revolucionárias; Fernando Pereira Marques, elemento do comando da LUAR que tentou ocupar a cidade da Covilhã no Verão de 1968 e José Brandão, que integrou a ARA, a organização armada do Partido Comunista Português. Todos eles meus amigos de longa data. É uma conversa entre amigos, portanto, esta que transcrevo da gravação. [Read more…]

A máquina do tempo: o episódio da Noite Sangrenta de 19 de Outubro de 1921

Faz hoje 88 anos. Elementos republicanos radicais da Marinha e da G.N.R. desencadearam uma tentativa de golpe revolucionário. Gerou-se uma situação confusa e descontrolada em Lisboa no decurso da qual foram barbaramente assassinados o chefe do Governo, António Granjo, Carlos da Maia, Freitas da Silva e Machado Santos, o herói da Rotunda em 5 de Outubro de 1910.

 

 

  

Na foto acima, pode ver-se o governo de Granjo. Ele está ao centro de chapéu e barba. Onze anos após a proclamação da República os republicanos davam largas ao sectarismo e matavam-se entre si. As sementes do pronunciamento militar de 28 de Maio de 1926 estavam lançadas. O fim da I República aproximava-se. Porquê tanto ódio? A nossa máquina do tempo vai levar-nos até esse dia negro.

 

 

 

A I Grande Guerra deixara a Europa devastada e desmoralizada. As democracias liberais estavam desacreditadas e os regimes autoritários, capitalizando o fracasso dos governos democráticos, iam ganhando peso. Em Itália, Benito Mussolini e os seus camisas negras estavam a um passo do poder. Na Alemanha, digeria-se com dificuldade a humilhação imposta pelo Tratado de Versalhes e o nazismo ia nascendo nesse caldo de incontida raiva. Em Portugal, ultrapassados os episódios do consulado sidonista e da Monarquia do Norte, atravessava-se um período de particular instabilidade – os golpes revolucionários, sucediam-se e os governos eram derrubados uns atrás dos outros.

 

O escritor Raul Brandão caracterizava a situação como «uma marcha heróica para um cano de esgoto». Segundo Carlos Ferrão vivia-se «uma agonia colectiva e declínio nacional». Os grandes vultos da república estavam afastados – Afonso Costa exilara-se em Paris, Brito Camacho fora para Moçambique… António José de Almeida era o presidente da República. O chefe do Governo, desde 30 de Agosto, era António Granjo (1881-1921). Activo militante republicano, foi deputado, director do jornal República, ministro da Justiça e da Agricultura e quatro vezes presidente do Ministério. Poeta e combatente da Grande Guerra era um homem de grande coragem e vivacidade. Quer o presidente da República, quer Granjo, líder do Partido Liberal, tinham derrotado nas urnas o Partido Democrático.

 

Eram os militares apoiantes deste que agora se revoltavam. Naquele dia 19 de Outubro de 1921. Lisboa acordou com os tiros de mais uma revolução. Eram sete e dez e desde as cinco e quarenta e cinco que tropas da GNR haviam começado a ocupar pontos estratégicos da capital. Na Rotunda a Guarda, que à época era a força militar mais bem apetrechada, instalou artilharia pesada e obuses, com os quais começou a flagelar alvos hostis. Só na Rotunda, a GNR concentrou 7000 homens. Granjo foi com alguns dos seus ministros para o campo de aviação da Amadora. Apresentou a demissão do seu cargo ao presidente António José de Almeida que a aceitou.

 

Cerca das cinco da tarde regressou a Lisboa. A cidade estava em poder dos revoltosos e Granjo refugiou-se em casa de Cunha Leal, seu amigo e vizinho e seu ministro das Finanças. A casa do ministro estava vigiada e os revoltosos depressa souberam que Granjo ali estava. A situação política estava perdida. A revolta triunfara, com as tropas insurrectas ocupando todos os pontos-chave da cidade. Os ministros andavam fugidos. Manuel Maria Coelho, um nome mítico, o lendário tenente Coelho da revolução de 31 de Janeiro de 1891, agora no posto de coronel, comandava os revoltosos. Embora os acontecimentos trágicos daquela noite tivessem escapado ao seu controlo. Aliás, ninguém, nenhum partido ou organização reivindicou o horror que foi aquela noite em Lisboa; quase todos o condenaram.

 

A «camioneta fantasma» (da qual hei-de falar mais em pormenor) começava a sua sinistra tarefa dessa noite, transportando António Granjo e Cunha Leal para o Arsenal, junto ao Terreiro do Paço. José Brandão, o autor de «A Noite Sangrenta», um dos livros que melhor narra o que se passou e porque se passou, descreve de maneira viva e veraz o assassínio de Granjo: «O chefe do Governo, vencido, mantém até ao fim a coragem que o abatimento não excluiu. Salta os três degraus e, então, lança as suas últimas palavras, em que há ódio e resignação: – Já sei o que vocês querem! Matem-me, que matam um bom republicano!

 

Soou uma descarga; debaixo, corresponderam. António Granjo caiu ao comprido, vertendo sangue por inúmeros ferimentos. Estava ainda nas últimas convulsões quando um dos assassinos, que, no dizer da testemunha ocular, é um clarim da GNR, de desmedida estatura, sacou da espada e a cravou no estômago com violência tal que, atravessando o corpo, ficou presa no sobrado. Depois, friamente, o facínora, pondo o pé sobre o peito de António Granjo, sacou a arma e gritou triunfalmente, mostrando-a aos companheiros: – Venham ver de que cor é o sangue do porco!».

 

Como houve diversas testemunhas oculares dos crimes, sabe-se como tudo aconteceu. O que até hoje permanece um mistério, são as razões que conduziram a actos tão horrorosos. Vitoriosa a revolta, tendo Granjo pedido a demissão, por que motivo teve de ser eliminado fisicamente? Depois de ler muito sobre o tema, a minha explicação é a de que não há explicação – um atávico ódio de classe? Os assassinos eram gente do povo, soldados rasos ou de baixa patente, com leituras apressadas de escritos revolucionários; as vítimas eram senhores, bacharéis, oficiais.

 

Talvez fosse apenas isso (a luta de classes tem as costas largas). O livro de que já falei – «A Noite Sangrenta», do historiador José Brandão, vai tão longe quanto é possível na explicação. Sendo uma edição de 1991, creio que está esgotada. Talvez o possam encontrar em bibliotecas.