«O aparecimento da LUAR, fora da órbita do PCP e de outros movimentos que surgiam com conotação marxista-leninista e envolvidos nos diferendos de carácter predominantemente doutrinário, marcou, em meu entender, uma mudança qualitativa na oposição ao regime, iniciando métodos de luta que outras organizações viriam a adoptar mais tarde, como as BR e a ARA», disse Fernando Pereira Marques.
FPM – Gostaria de acrescentar um pormenor ao que disse há pouco.
CL – Somos todos ouvidos, Fernando.
FPM – Entre o núcleo fundador da Liga de União e Acção Revolucionária, estavam antifascistas que já tinham participado em outras acções com grande impacte, associadas a tentativas mais amplas de derrube do regime: Palma Inácio, além da sua participação nos anos 40 numa tentativa de golpe militar, tinha entrado no célebre desvio do avião da carreira Casablanca – Lisboa para lançar panfletos sobre a capital; Camilo Mortágua foi também um dos que realizou esta operação e esteve ainda na tomada do paquete Santa Maria. Estas acções, apesar das suas repercussões, inclusive internacionais, caracterizavam-se por se inserir na concepção de luta designada por “reviralhista”, animada por figuras como Humberto Delgado e Henrique Galvão que apostavam nessa tradição que durante muitas décadas predominara entre a oposição.
CL – E como correram essas primeiras acções?
FPM – O fracasso de tentativas como a do chamado assalto ao quartel de Beja – evidentemente inserida num movimento mais amplo – e o facto de serem actos, indiscutivelmente corajosos, mas sem continuidade, mais o assassínio do General Sem Medo, levaram antifascistas como os citados e outros – já de outra geração – a considerarem que era tempo de se seguir uma outra via. Outra via que assentasse numa organização de carácter unitário e antifascista, que mobilizasse no interior do país, mas também no exterior, inclusive os muitos jovens refractários e desertores espalhados pela Europa. Na verdade, a partir de 1961, vir-se-iam a abrir três frentes nas colónias o que vulnerabilizava o regime, sendo importante para aumentar esta vulnerabilidade a abertura de uma frente interna.
CL – Mas a LUAR só apareceu mais tarde.
FPM – Sim. É neste contexto que, em Maio de 1967, se realizou, com os já citados e Luís Benvindo e Barracosa, e muita outra gente que apoiou na retaguarda, o assalto ao Banco de Portugal na Figueira da Foz, logo seguido por um desvio de armas no quartel de Évora, com Seruca Salgado como principal responsável. Ou seja, por um lado queria-se assim resolver o problema do financiamento, sem dependências externas ou político-partidárias e, por outro, mostrar logo os objectivos mais amplos, antifascistas e anti-colonialistas, dessa operação de obtenção de fundos que, como se sabe, teve êxito. .O aparecimento da LUAR, fora da órbita do PCP e de outros movimentos que surgiam com conotação marxista-leninista e envolvidos nos diferendos de carácter predominantemente doutrinário, marcou, em meu entender, uma mudança qualitativa na oposição ao regime, iniciando métodos de luta que outras organizações viriam a adoptar mais tarde, como as BR e a ARA.
CL – E com as BR, como foram as primeiras acções?
CA – Nós preparámos a primeira acção com todo o rigor e depositávamos nessa acção – a destruição da base da NATO na Fonte da Telha, com uma grande esperança, mas acontece que resultou numa enorme frustração. Na televisão nas notícias desse dia, o Dutra de Faria, um prócere do regime, director da Agencia Nacional de Informação, dizia que Portugal era um pais com alguma singularidade, visto que aparecia um grupo a proclamar-se autor da destruição duma base na Fonte da Telha, mas que na verdade essa base não existia. Foi isso que nos conduziu oito dias depois a ter que destruir a bateria de canhões no Barreiro, que em termos estratégicos não tinha nenhuma estratégia, para lavarmos a nossa honra…
CL – Todos sabemos, José, o grande impacto que teve na opinião pública a acção da ARA emTancos. Porque é que, ao contrário das BR e da LUAR, que só se dissolveram após o advento do regime democrático, a ARA se dissolveu antes do 25 de Abril?
JB – A ARA suspendeu as suas actividades em Maio de 1973. Houve um debate interno sobre esta decisão. Havia dúvidas e a decisão não foi absolutamente evidente. Nessa altura, a ARA estava diminuída, com nove dos seus operacionais presos. Esse foi, naturalmente, um factor que pesou, mas não foi decisivo. Conforme palavras de Raimundo Narciso, «nessa altura era mais fácil recrutar novos elementos e fortalecer a organização. O argumento que mais pesou foi de carácter político.» Para a direcção do PCP foi uma boa oportunidade para pôr ponto final a uma actuação que nunca aceitara de bom grado. A repressão que se abatera sobre a ARA apenas atingira operacionais anónimos e não fizera qualquer mossa na estrutura directiva do Partido liderado por Álvaro Cunhal. Nenhum “histórico” que ocupava funções na luta armada foi preso nesta ofensiva contra a ARA em 1973. A este propósito, Raimundo Narciso tem a humildade de confessar que não sabe o que faria se tivesse sido preso (embora se tivesse preparado para não falar) e noutra admite que “chegaram ao fim os melhores ou os que tiveram a sorte de não terem sido presos”.
CL – Concordas, Carlos? Tu viveste também esta fase ainda ligado ao PCP, creio que na qualidade de funcionário. Na tua opinião, como é que o PCP aceitou enveredar pela acção armada, embora a contragosto, com o José Brandão já explicou.
CA-. Sim, efectivamente nesta segunda fase do PCP, a acção armada deixou de ser condenada, mas não era praticada, sendo mesmo sabotada. Só perante a nossa cisão, e a eminência da acção armada, é que foram obrigados, num curto período, a ter que fazer acções, através da ARA. Simplesmente, isso desencadeou um processo repressivo forte no PCP (não estava em condições orgânicas de poder coexistir como organização armada). Rapidamente e a pretexto que as condições de luta tinham mudado, parou com a acção armada. Desejou mesmo que com as Brigadas Revolucionarias acontecesse o mesmo, mas isso são outros contos…
CL – José, concorda?
JB – Sim, o Carlos Antunes tem razão. Porém, não só pelos princípios que defendia, como pela sua prática, a ARA tinha um objectivo claro na estratégia do PCP consignado na regra da insurreição popular armada. Era vista como um elemento potenciador da luta de massas e de desgaste do aparelho colonial e repressivo. Visava alcançar um forte impacto na consciência da população portuguesa e na própria opinião pública internacional. Todos estes objectivos só podiam ser levados a bom termo por uma organização não terrorista. Nunca atacou pessoas, nem bens que não estivessem ligados à política colonial e fascista.
CL – José Brandão, houve algum momento especial durante a intervenção da ARA que queira partilhar connosco?
JB – Quando um deputado pediu a pena de morte para os «terroristas» da ARA.
CL – A pena de morte?
JB – Sim. Dois dias depois de uma operação da ARA o deputado Cazal-Ribeiro pediu na Assembleia Nacional «a maior severidade, implacável severidade, para a procura e o castigo dos autores do atentado da madrugada do dia 12, na doca de Alcântara, covarde como todos aqueles que trazem a marca da A.R.A. – organização comunista de tendência, ao que parece, maoista» … «A bandeira portuguesa tem de continuar a flutuar, embora isso pese àqueles que a renegam, do Minho a Timor se não queremos negar-nos a nós próprios…». Referindo-se depois a padres de Moçambique que não deixaram entrar a bandeira portuguesa numa igreja, aos «piratas do Santa Maria» Henrique Galvão e outros, a Miguel de Vasconcelos nos idos de 1640, e outros «renegados» como os da ARA, o deputado fascista sentenciou que todos «constituem uma página negra para a nossa história e são a excepção das nossas virtudes e da nossa raça: a negação dos nossos pioneiros – Santos, Mártires e Heróis!».
CL – Fernando, tens alguma recordação especial?
FPM – Um das operações ambiciosas e – ao contrário do que se diz – devidamente planeada que não teve êxito, foi a da ocupação temporária da Covilhã. O falhanço deveu-se a problemas técnicos, devido à falta de meios e a causas que aqui seria longo explicar, mais algumas circunstâncias fortuitas. A verdade é que houve várias prisões ( no entanto a enorme maioria dos envolvidos não foi localizada). Um desses presos foi, e isso claro que constituiu rude golpe, o próprio Palma Inácio. Recordo, pois, como uma enorme humilhação para o regime e a PIDE, a sua fuga das celas privativas dessa polícia no Porto, na qual participei também como detido. Tratou-se de uma fuga só possível devido à enorme coragem desse querido companheiro recentemente desaparecido, pois ele estava submetido a uma rigorosa vigilância e sabíamos – eles o disseram – que havia ordens claras para o abater caso o Palma voltasse a tentar fazer o que em 1947 já fizera no Aljube. Acrescia que não havia apoio exterior, pelo que o sucesso dessa fuga foi absolutamente extraordinário. Recorde-se que a dimensão do facto sobre a imagem da polícia e do regime, está patente em, pela primeira vez ou mesmo única na História do fascismo, se ter posto a prémio a cabeça de um militante. Anúncios nos meios de comunicação divulgaram que haveria uma recompensa de 50 contos a quem denunciasse ou conduzisse à prisão do Palma. Ter acompanhado de perto todo o processo que conduziu a essa fuga é uma das recordações mais emocionantes que tenho.
CL – Alguma recordação mais forte, Carlos?
CA – Não. Todas a recordações da acção são memórias especiais. Estaria aqui horas a falar…
CL – Uma pergunta, talvez retórica, mas que não resisto à tentação de fazer. Quando
lutavam, arriscando a liberdade e a vida, era com o tipo de democracia que hoje temos que sonhavam? O sistema político que hoje vigora em Portugal, era o vosso objectivo? José Brandão.
JB- Tenho para mim um sonho que não se esgota no tipo de democracia que hoje temos.
O sistema político que hoje vigora em Portugal, não é objectivo que satisfaça quem deseje uma sociedade mais justa e de maior humanidade social.
CL – Fernando?
FPM – Como já disse o objectivo principal da LUAR era o derrube do fascismo. E isso foi conseguido graças ao 25 de Abril e aos seus capitães. A institucionalização da Democracia, a sua consolidação, o fim da Guerra Colonial, a promulgação de uma Constituição das mais avançadas da Europa e do mundo constituíram grandes vitórias. Mas, na linha do que já disse, considerando os ideais expressos em vários documentos, interpretando o sentir de muitos dos que foram meus companheiros e na minha própria opinião, evidentemente que gostaríamos que uma outra democracia mais perfeita e uma outra sociedade mais justa tivessem sido construídas em Portugal. Todavia, a experiência e a idade levaram-nos a perceber que não se avança linearmente, que é lento o trabalho da velha “toupeira” – como dizia Marx -, e que, por isso, a História não acabou – como houve quem decretasse.Com avanços e recuos será possível mudar a sociedade e o mundo. Aliás, se não se caminhar neste sentido de mudança, a ferocidade do capitalismo desenfreado e a sofreguidão dos poderosos virão a pôr mesmo em causa a vida neste nosso planeta e até o próprio planeta. Será que os povos não despertarão a tempo? Há que acreditar nesse despertar.
CL – E tu, Carlos, o que dizes sobre o que se idealizava e sobre o que se tem hoje?
CA- Nós lutávamos pelo socialismo e não por esta espécie de capitalismo selvagem. Não estávamos à espera desta caca, mas é necessário dizer que mesmo sabendo o que isto deu, continuaria a bater-me, não estou nada arrependido.
CL – Obrigado a todos. Creio que foi útil e esclarecedora a nossa conversa. Os leitores o dirão.
É com homens e mulheres de corpo inteiro que se luta dia a dia por um mundo melhor, os jovens de hoje devem continuar a acreditar ser possivel fazer um mundo melhor, basta para tanto ser um pouco mais unidos uns com os outros para mudar esta forma de viver.