Abaixo o mistério da poesia

Abaixo o mistério da poesia

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
E um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
Para ver quem é,
Enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
E correr pelos interstícios das pedras, pressuroso e vivo como vermelhas minhocas
Despertas;
Enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
Órfãos de pais e mães,
Andarem acossados pelas ruas
Como matilhas de cães;
Enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
Com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
Num silêncio de espanto
Rasgado pelo grito da sereia estridente;
Enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
Cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
Amassando na mesma lama de extermínio
Os ossos dos homens e as traves das suas casas;
Enquanto tudo isso acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
Enquanto for precido lutar até ao desespero da agonia,
O poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.

António Gedeão

Quem poderá traduzir “Lágrima de Preta”?

O racismo pretende construir muros e prisões. Estrutural ou não, deve ser combatido. O objectivo é erradicá-lo, extinguir o racista, não através da violência física, mas condenando-o à inexistência, através da educação, da cultura e das artes. Das artes, insisto. Tudo isto será utopia, mas é pela utopia que devemos ir.

O anti-racismo deve servir para derrubar muros, para explicar ao mundo que não estamos separados pela cor da pele. Como tantas lutas legítimas, também o anti-racismo está sujeito a exageros e perversões. Qual é a diferença? O racismo deve ser destruído, o anti-racismo precisa de ser melhorado. O problema de quem faz força em sentido contrário reside, por vezes, num excesso nascido da revolta ou da necessidade de compensar a força do inimigo.

Recentemente, na Holanda, surgiu uma polémica a propósito da tradução do poema que Amanda Gorman escreveu e declamou na tomada de posse de Joe Biden. Quando se soube que Marieke Lucas Rijneveld, a tradutora escolhida, era uma mulher branca, houve uma revolta tal que esta, apesar de avalizada pela própria autora, pediu desculpa e retirou-se. Pelos vistos, aquele poema só pode ser traduzido por alguém com a mesma cor de pele da autora.

O anti-racismo transforma-se, assim, num racismo de sinal contrário, mesmo que as intenções sejam, originalmente, as melhores. [Read more…]

As lágrimas do Euro 2012

O Euro 2012 tem dado que falar, mesmo depois do derradeiro jogo.

Muito se chorou nos estádios onde decorreu. Dentro e fora do campo foram derramadas lágrimas por derrota, vitória, orgulho, etc.

O outro lado do Euro 2012…

É caso para dizer que há lágrimas e lágrimas: elas não são todas iguais, embora o poema de António Gedeão diga que todas são, sem distinção, constituídas de “água (quase tudo) e cloreto de sódio”!! Há que respeitar quem chora, por que chora e o momento em que o faz, involuntariamente, espontaneamente, no meio da multidão e sem esperar ser filmado!

Que o diga a adepta alemã cujas lágrimas de orgulho e felicidade pela sua seleção foram interpretadas e manipuladas erradamente.

As suas “lágrimas foram choradas na execução do hino alemão, antes de a bola rolar, e que a realização televisiva da UEFA tinha gravado, descomposto e diferido a realidade para o final do jogo”. Mas foram usadas para ilustrar a derrota da Alemanha contra a Itália. Ela não gostou da brincadeira e, com razão, vai processar a UEFA. Isso não se faz! O outro lado da UEFA…

Apetece-me acabar este post dizendo aos fotógrafos e aos operadores de câmara: as lágrimas não são para se registarem. Talvez o riso… não sei… Mas as lágrimas são só para quem as chora. Por que as evitamos, disfarçamos, escondemos, negamos? Por que há tantos e tantas que não vemos chorar em público ou à frente de outros? Porque é coisa muito íntima.

Há muito que se lhe diga para se deixar cair (ou não deixar cair) uma lágrima!

Dia da Àrvore e Dia da Poesia

 

 

“As árvores crescem sós. E a sós florescem.
Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão (…).
Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
(…)
E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
(…)
Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
Como se nada fosse.
As árvores, não.
(…)
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
(…)
Virtude vegetal viver a sós
E entretanto dar flores.
(António Gedeão) [Read more…]