Sem reflexões ou programas prévios. De supetão, embarquei no avião – embarcar em meio aéreo baralha-me. Pelo sentido etimológico, sempre entendi embarcar como significado de entrar e viajar em barco. Porém, do ar fizeram mar e, nos tempos actuais, passámos a embarcar e navegar em máquina voadora, impulsionada por turbina de gás (a jacto, diz a malta).
Deixe-se de lado esta reflexão sobre a semântica do embarcar e use-se um relato mais simples: voei para a minha terra adoptiva, Rio de Janeiro, onde tenho familiares próximos e amigos, primos direitos. Vivem em Jacarepaguá. Lá longe, tenho quarto privativo, com janela virada para a Tijuca. Sempre disponível e arrumado. Como vivesse ali todo o ano, de Janeiro a Dezembro, D. Neide encarrega-se de o aprumar. As velhas fotografias dos meus pais e outras dos pais deles, todos falecidos, integram a decoração como imagens de saudade ilimitada e incomensurável próprias do luso sentimento.
Deixei para trás o frio, a malfadada crise e os pensamentos adversos, assim como a cambada promotora da nossa vida caótica: Passos, Portas, Cavaco, Merkel, Draghi, Barroso e a ‘troika’, entre outros. O avião afastou-me da peçonha. Sinto-me livre e limpo foi o que me veio à cabeça quando cheguei ao aeroporto do Rio.
Todavia, tenho de confessar a saudade, elástica e indomável, não estancou as recordações de quem em Portugal deixei. Nem consegui deter uma furtiva lágrima pela Ana, a Teresa, o Mário, o Nuno e, acima de tudo, as minhas sobrinhas Leonor e Margarida e o Francisco, o mais jovem dos sobrinhos, de dois meses apenas.
Sempre vivi a consoada como tradição de convívio e pitança. Sem convicção religiosa. Os meus primos brasileiros, cariocas puros, são católicos devotos – “até demais” diz um amigo deles, ateu. Desde os tempos da casa dos pais, na Barata Ribeiro, em Copacabana, que cumprem o ritual da ceia natalícia à portuguesa. Tranquilizei-os antes de partir: “levo uma geleira com bacalhau islandês, couve portuguesa, um queijo da serra e, à parte, umas garrafas de tinto do Douro e uma garrafa de azeite alentejano, além de outros petiscos”. Batatas e demais ingredientes, compram-se no Brasil.
Vai ser uma vez mais, e depois de três anos de interrupção, um Natal no Rio, caloroso na amizade, quente na temperatura da cidade (a rondar os 30 graus), apesar do Pai Natal vestido como a ‘Coca-Cola’ o criou para o mundo. Eu, envergarei ‘T-shirt’, calções e sapatilhas. Lembro-me de quem por cá ficou a sofrer o frio, uns atacados por gripe, em estado febril e na incómoda ginástica de inalação do ‘Vick VapoRub’, em cadenciado entope-inala-entope-inala-entope…
Comigo será diferente. Quentinho, por dentro e por fora, acalorado pelas caipirinhas, gozo a sessão de música com que terminará o meu Natal brasileiro. O meu primo Joni, ‘cara legal’, é tocador de viola e dotado de boa voz. Oferece-nos músicas do Caetano, do Jobim, do Gilberto Gil, do Jorge Ben, do João Gilberto e de outros menos falados. Há uma canção, porém, que, à memória do Pai, exilado durante mais de 30 anos no país irmão, ele não falhará: “Tanto Mar”, do Chico.
Ao saudar a memória do Pai, nem imaginará, como nestes tempos de cinzento e duro ‘cavaco-passismo’ português, de portas escancaradas à pobreza, começa a ser imperioso fazer renascer os cravos, do Norte a Sul de Portugal, a fim do Chico a essa canção regressar.
A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.
Vinicius de Moraes
Tudo de Bom Carlos Fonseca
Também para si Adelino.
Um abraço