… são, mais uma menos outra, perto de três biliões de gente. Pouco menos de metade dos pouco mais de seis biliões de almas que, presentemente, povoam o planeta. Todas estas mulheres partilham características biológicas comuns. Algumas partilham ainda destinos comuns, consequência directa dessa ‘determinação’ biológica. Umas vivem no mundo que, em 1945, proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Outras vivem num mundo outro, sem a garantia de verem cumpridos os direitos básicos. Entre todas as mulheres do mundo há umas que são mais iguais que outras. Porque nem todas as pessoas são iguais à face da Lei como a referida Declaração anuncia e a multiplicação de iniciativas confirma. O que demonstra que, em certos mundos (muitas vezes mesmo do lado de lá da nossa rua), melhor seria ter nascido outro. Ou ter nascido do lado de cá da rua, ou do lado de cá do mundo. Ou, no limite, ter nascido homem. Ter nascido sem o ‘estatuto de menoridade’ que a condição feminina ainda implica em tantos mundos dentro do mundo.
Eu sou uma mulher entre todas as mulheres do mundo. Não represento, no entanto, todas as mulheres do mundo… porque não nasci apenas do lado onde o mundo se apresenta mais forte. Nasci também no lado menos triste da minha rua. Do lado onde a violência nunca existiu. Nem os abusos. Nem os preconceitos. Como todas as mulheres do mundo, bastava um golpe de asa e poderia ter nascido em qualquer parte. Podíamos ser todos de qualquer parte, aliás, mulheres ou homens.
Sob qualquer das suas formas, a violência contra as mulheres é ainda a mais frequente violação dos direitos humanos no mundo. A violência contra as mulheres não conhece fronteiras políticas, geográficas, económicas, sociais e culturais. É muitas vezes vivida silenciosamente. Por isso, os dados de que dispomos mais que inquietantes serão, na verdade, impressionantes.
Vejamos alguns.
Cerca de um terço de todas as mulheres do mundo está sujeito a diversos níveis de abuso; de poder, claro. Quase sempre de poder masculino. Mais de um bilião (digo de outra forma: mil milhões) de mulheres no mundo (vale a pena enfatizar: uma em cada três) foi espancada, violentada, forçada a manter relações sexuais ou sofreu outro qualquer tipo de violência. 150 milhões de mulheres com menos de 18 anos foram sexualmente agredidas, 50% das quais tinham menos de 16 anos. Para 64% das mulheres na República Democrática do Congo, a primeira experiência sexual ocorreu sob a forma de agressão. 40 milhões de mulheres no mundo foram sujeitas a mutilação genital e 3 milhões, anualmente, correm este risco (Amnistia Internacional **)
Todos os anos, segundo a mesma fonte, cerca de dois milhões de crianças do sexo feminino entre os 5 e os 15 anos de idade são forçadas à prostituição. O tráfico de mulheres é actualmente um dos negócios mais rentáveis do mundo e movimenta anualmente qualquer coisa como 7 biliões de dólares. Mais ainda, em todo o mundo, um quinto das mulheres já foi vítima de violação ou de tentativa de violação. A violação tornou-se crescentemente mais uma arma de guerra. Como se a guerra não fosse já violação suficiente!
Como é referido pela Amnistia Internacional, cerca de 70% dos homicídios de mulheres são cometidos pelos seus companheiros. Mais ainda (terrível paradoxo), o mundo tem falta de aproximadamente sessenta milhões de mulheres, devido à prática do ‘aborto selectivo’ ou do infanticídio feminino, sobretudo em países onde a condição feminina é amplamente desvalorizada, como a Índia ou a China. Na Zâmbia, cinco mulheres são assassinadas por semana pelos seus companheiros. Em toda a África subsaariana – onde o número de pessoas infectadas com o vírus da SIDA não pára de crescer – aproximadamente dois terços das pessoas infectadas são mulheres. No Afeganistão as mulheres não podem ir ao médico ou frequentar a escola. Na Nigéria as mulheres continuam a ser apedrejadas até há morte por terem, supostamente cometido adultério.
Mas para que não se pense que isto acontece apenas do outro lado do mundo, atravessemos a rua.
Segundo um relatório do Conselho da Europa, a violência doméstica é a principal causa de incapacidade e morte entre as mulheres, provocando mais problemas de saúde e vítimas mortais que as doenças cancerígenas e os acidentes de viação. Nos Estados Unidos a cada 15 segundos uma mulher é vítima de agressão física, diariamente quatro mulheres são assinadas pelos seus cônjuges e a cada 90 segundos uma mulher é violada. 83% das raparigas entre 12 a 16 anos experimentou situações de assédio sexual na Escola. Em França 25 mil mulheres são vítimas de violências várias anualmente. Na Dinamarca, Suécia, Finlândia e Noruega – países frequentemente apontados como exemplares no que se refere à igualdade de género – as mulheres vítimas de agressão sexual ainda se deparam com dificuldades sérias para levarem os seus casos a tribunal e, em consequência, a maior parte dos agressores permanece impune.
Ousemos, finalmente, entrar em casa.
Em Portugal morrem anualmente dezenas de mulheres em consequência de actos relacionados de modo directo ou indirecto com a violência doméstica. No ano de 2013, 33 mulheres foram assassinadas pelos seus companheiros e ex-companheiros***. Em 2013, a APAV registou 20.642 crimes, um número superior ao de 2012. A violência doméstica constitui a maior parte dos crimes (84,2%), sendo as mulheres a grande maioria das vítimas.
Eu, que sou apenas uma mulher entre todas as mulheres do mundo, encontro nestes dados (e em todos os outros que menos violentamente nos dão conta da persistência das desigualdades de género) matéria suficiente para me envergonhar de ser pessoa.
É por isso que dispenso as flores no Dia Internacional da Mulher. É por isso que, onde houver um ser humano consciente – mulher ou homem – haverá sempre um(a) feminista.
* crónica ligeiramente adaptada (e atualizada, no que se refere aos dados, de uma outra que em tempos escrevi para o Jornal de Notícias)
** mais dados e campanhas aqui
*** informação daqui
O universo feminino povoa-se de neblosas, galáxias, estrelas, buracos negros..
especialmente buracos negros provocados pela falta de informação e de dados sobre as reais situações das mulheres no mundo, no que aos atentados contra os seus direitos humanos diz respeito.
Gostei muito desta crónica. É muito importante dar voz a todas as pessoas que, no silêncio, sofrem deste tipo de injustiça. A história é, sem dúvida alguma, uma prova da força das mulheres, que sempre lutaram pelos seus direitos sem nunca se deixarem vencer.
Felicidades,
Sónia
Obrigada Sónia. E sim, parece-me importante alertar para as violações dos direitos das mulheres e para as persistentes desigualdades de género.
Feliz Dia da (maravilhosa) Mulher Elisabete 🙂
Obrigada João, para si também, que isto dos feminismos (leia-se a defesa dos direitos humanos das mulheres) não é só para as mulheres 🙂
Ser feminista é daquelas muitas coisas que nem apeteceria ser mas que, sendo mulher e portuguesa, não haverá mesmo como não ser/es.
(Não é pelo teu conhecidíssimo feminismo que aqui passo, e só para apontar outra conhecidíssima coisa: a inutilidade do teu e-mail académico. Já vou em duas ou três tentativas. Nada)
Beijo
pois. eu diria sendo mulher. ponto. o meu email não funciona? tira-lhe o csjp. elisa@ua.pt. se fosses ao site da UA davas logo com ele 🙂
Eu não, porque já há neste mundo sítios relativamente civilizados. Não vejo que uma islandesa, em particular, precise lá muito de feminismo em pleno séc.XXI. (Mesmo as nórdicas, em geral, não têm muito mais do que ir só mantendo a guarda). São excepções, remotas, mas já vão existindo.
Isso do cjsp é para mim chinês. Depreendo que seja para excluir o dao. Assim farei, logo te reencaminhando a perdida prosa toda.
se leres a ‘crónica’ seguinte verás que mesmo nesses países exemplares há dificuldades….eh pá tu ainda tinhas esse mail do dao? há anos que o não tenho! já recebi os teus mails 🙂 ey em breve responderei. até lá um beijinho.
Obrigado por esta publicação, ainda me dá mais vontade de entrevistar pessoas para falarem nestes temas, para que se vá tomando força para combater estes actos grotescos. Muito obrigado mesmo, e ainda me abriu mais os olhos. Pois por muito que se tente estar atento, há ainda algumas informações que nos escapam. E vale mesmo haver pessoas como a senhora que não hesitam em falar sobre estes temas.
Quanto às flores é um acto que não serve de nada, tendo em conta o pouco ou nada que se luta diáriamente em Portugal. Mas para mim mais grave que a hipocrísia das flores são os pénis na cabeça…