Uma nação doente

Santana Castilho *

A conturbada Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC) foi realizada por 10.220 professores, dos quais 1.473 reprovaram. Esclareço que o uso do qualificativo “professores”, que não “candidatos a professores”, como o ministro da Educação lhes chama, é consciente e está correcto. Porquê? Porque a lei vigente lhes confere esse título profissional, logo que terminam a sua formação superior. Portanto, se os apelidarem de “candidatos”, serão só “candidatos” a um lugar em escolas públicas. Feito este esclarecimento, passemos aos factos e às considerações que me merecem:

1. Segundo os resultados divulgados, relativamente ao item da prova em que se pedia a produção de um texto com uma dimensão compreendida entre 250 e 350 palavras, 62,8% desses textos continham erros ortográficos, 66,6% erros de pontuação e 52,9% erros de sintaxe. Isto é preocupante? É! Seja qual for a área científica da docência, é exigível a um professor que conheça o código de escrita e, muito mais, a sintaxe, sem cujo domínio não se exprimem ideias de forma ordenada e coerente. Como é preocupante o presidente da República dizer, reiteradamente, “cidadões” em vez de cidadãos! Ou recriar o futuro do verbo fazer, de farei para “façarei”. Como é preocupante o primeiro-ministro dizer “sejemos” em vez de sejamos. Como é preocupante encontrarmos no comunicado do Ministério da Educação e Ciência, ironicamente sobre a PACC e no próprio dia em que teve lugar a segunda chamada, um estranho verbo “revir” em lugar de rever. Como é preocupante uma deputada escrever “sensura” por censura, “tulero” por tolero ou “bloquiarei” por bloquearei.

2. Posto o anterior, sucede-se a pergunta óbvia: e agora? Agora temos a humilhação pública de toda uma classe, com todo o cortejo de generalizações abusivas e nada acrescentado à superação de eventuais lacunas na formação dos jovens professores (jovens, sim, porque é bom recordá-lo, falamos de professores que nunca deram uma só aula ou têm menos de cinco anos de contratos precários, em regime de escravatura moderna).

O incremento da qualidade dos professores só se consegue com a valorização da sua formação, inicial e contínua, e com a melhoria das condições de trabalho. Mas Nuno Crato e os que o apreciam como o justicialista do “eduqês” galopam estes resultados como se com eles fosse possível substituir o investimento na formação por uma prova que não destrinça um bom professor de um satisfatório perito em decifração de charadas.

3. Dito o que disse supra, tenho legitimidade para fazer 3 perguntas simples:

– Como se pode confiar na integridade do processo de apuramento dos resultados da PACC, particularmente depois de o Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) ter trocado chaves de correcção e de o país ter conhecido a fraude da avaliação encomendada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, cujo contrato impunha um determinado resultado?

– Como foram contabilizadas, nas estatísticas do IAVE, as provas entregues depois de marcadas com diferentes expedientes de protesto? Foram muitas ou foram poucas? Quantas?

– Que influência tiveram nos resultados os múltiplos tipos de coacção verificados e as grosseiras faltas de condições mínimas para a realização de um exame (ampla e publicamente documentadas nas televisões)?

4. O epílogo desta saga remete-nos, finalmente, para o mais grave problema da nossa sociedade: a pulverização da confiança dos cidadãos no Estado e nas elites que nos governam. A deriva do país, entregue a dirigentes sem ética nem vergonha, não se detecta apenas na Educação. Está por todo o lado, qual tsunami de lama.

O governador do Banco de Portugal e o presidente da República disseram-nos que o BES era sólido e que podíamos estar tranquilos. Com o golpe de mão de 3 de Agosto e a divulgação pública da acta que o consumou, não foi só o BES que foi reduzido a nada. Nenhum dos que “se não sabiam deviam saber” veio a público reconhecer a incompetência com que facilitaram tantos crimes de mercado.

Em 2007 escrevi sobre o drama de Manuela Estanqueiro, professora com 63 anos de idade, 30 de serviço, vítima de leucemia aguda, a quem, por duas vezes, uma junta médica recusou a reforma por doença e obrigou a dar aulas nas vascas da morte e em sofrimento desumano. Um tribunal de segunda instância acaba de condenar a Caixa Geral de Aposentações a pagar à filha uma indemnização de 20.000 euros. Os responsáveis por esta vergonha de uma sociedade sem critério, mais aqueles que tiveram o desplante de recorrer da sentença inicial, pedindo que a indemnização fosse reduzida para 5.000 euros, continuam nos seus postos, sem beliscadura. Como Ricardo Salgado permanecerá no seu iate e na sua mansão, sem que o fisco estranhe que tal cidadão não tenha um só bem em seu nome.

Três anos de austeridade não destruíram só a economia, o emprego e os direitos sociais. Adoeceram a nação.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comments

  1. joao lopes says:

    uma nação doente é uma generalização muito grande.existem algumas bastante doentes,sim,por exemplo alexandre homem cristo no artigo”temos maus professores” no observador ou tudo o que têm sido escrito no “blasfemias”,gente a espumar ódio todos os dias.e estes não sâo pobres nem precisam de bolsas.estes são os representantes do pensamento do sr.crato

  2. Miguel says:

    Eu acabo um curso de Engenharia de X/Física/Direito ou whatever. Ora se a lei vigente diz que eu já sou um Engenheiro de X ou um físico ou um advogado (e não apenas uma pessoa com uma licenciatura/mestrado nessa área) então eu, por lei, não preciso de fazer qualquer teste ou entrevista adicional para ser admitido numa empresa que espero trabalhar….

    A vida é tão bonita para vós… Pena não se aplicar aos que estão mesmo na amargura.

    • António Fernando Nabais says:

      Brilhante, Miguel, simplesmente brilhante! Uma pessoa tira um curso superior especificamente direccionado para o ensino, faz um estágio pedagógico, mas só tem direito a ser considerado professor se obtiver aproveitamento numa prova posterior a todo esse processo.
      Depois, ó comentador esclarecido, o aproveitamento na prova não tem como consequência a entrada num emprego. O aproveitamento na prova PERMITE concorrer a um emprego. Um emprego que, na realidade, não existe.
      A vida é bonita para quem? Para os milhares de professores com vários anos de serviço que foram despedidos porque um ministro aumentou o número de alunos por turma e diminuiu a carga horária de várias disciplinas, pondo em risco a qualidade do ensino? Esses professores não têm direito a estar na amargura, mesmo sabendo que há pessoas que ainda estão em pior situação?
      Você tem um dom, Miguel: consegue escrever sem pensar. Deus o conserve, querido.

      • Miguel says:

        Eu vou direto ao assunto. Não vejo qualquer problema em fazer uma prova. Tal como milhões de outras pessoas se sujeitam a provas/entrevistas, ou a ter constantes formações, ou tirar especialidades para terem mais possibilidade de conseguir serem chamados para a entrevista.

        Não percebo o porque de vocês considerarem um insulto à vossa dignidade o fazer uma prova de avaliação. Dignidade, é ser integro, não roubar ou matar, mas não vejo uma prova a encaixar-se.

        • António Fernando Nabais says:

          Já percebi: o Miguel prescinde de pensar também quando lê. Assim é difícil.


  3. Os professores não devem dar erros ortográficos nem de sintaxe. Muito bem.
    E os governantes que detêm o poder de fazer o melhor ou o pior pelo seu país: não devem fazer o quê?!
    Códigos de ética, honradez e transparência…são para quem?!
    Um país sobreviverá com um povo que dê erros ortográficos e de sintaxe, já não sobreviverá com as corjas de oportunistas que, paulatinamente, sentados nas cadeiras do Poder destroem o erário público e a esperança de futuro!