A grande beleza da Bósnia. O insuportável calor da Herzegovina. Um filme de Emir Kusturica e as cigarras de Mostar.
A BiH não é um país fácil. As razões são muitas. E não tenho tempo (nem rede, neste momento) para enumerar todas. As pessoas ora são simpáticas, ora extraordinarimente rudes. A paisagem ora lembra o paraíso (como se eu soubesse o que é o paraíso), ora o mais profundo inferno (como se eu soubesse também o que isso seja). Ora descobrimos recantos de silêncio belo, ora encontramos a música mais atroz.
Saí de Sarajevo no autocarro das 11h30 em direção a Mostar. Um dos senhores do hotel levou-me a mala até à estrada, à entrada da cidade velha, para que eu apanhasse o táxi que me levaria à estação dos autocarros. Disse-me que esperava comigo e embora eu lhe tivesse dito que não era preciso, ali ficou. Enquanto esperávamos disse-me que eu tinha feito bem em ficar tantos dias (na verdade, não acho – e agora que estou em Mostar, até acho menos – que tivessem sido assim tantos), que uma cidade não se conhece em dois dias. Concordei e disse-lhe que, mesmo em cinco dias, não tinha visto tudo. Uma cidade como Sarajevo precisaria de uma vida inteira.
O táxi chega e vou para a estação. Compro o bilhete e apanho o autocarro. Devia ter vindo de comboio, mas na BiH praticamente não existem comboios e, os que existem têm horários reduzidos. Para Mostar há mais de 10 autocarros diariamente e apenas dois comboios. Um antes das 7 da manhã e outro antes das 7 da tarde. Resolvo assim fazer a viagem de autocarro. Perdi alguma coisa, certamente, mas consola-me o facto de o autocarro acompanhar a linha do caminho de ferro, quase sempre e de a vista ser absolutamente extraordinária, mal saímos de Sarajevo. Para Mostar serão cerca de 130 km, que o autocarro, que pára em todo o lado durante o percurso, demora 2h30 a fazer. O comboio demoraria três.
No autocarro vai gente sentada e em pé. Muitos locais e turistas. Franceses, italianos, americanos. Faço parte da viagem dividindo o banco com duas raparigas muito jovens, altas e magras, americanas, que passam o tempo a falar de rapazes e das unhas. Podia ser pior, suponho, não fora a circunstância de intervalarem cada palavra que dizem, como é hábito entre os jovens americanos, com ‘it’s like…’. No banco da frente dois locais. Um homem aparentemente pouco mais velho que eu, um metaleiro à maneira, de t-shirt sem mangas dos AC/DC e uma senhora de uns 60 anos que lê uma revista cor-de-rosa. Não percebo o que está escrito, só algumas palavras, mas as fotografias são bastante ilustrativas. Assim, há não sei quem que aumentou o peito e mais não sei quem de quem se diz ter feito striptease. Como facilmente se constata, a vida das ‘estrelas’ é idêntica, em toda a parte.
O autocarro vai avançando entre as montanhas magníficas da Bósnia. De repente um sinal diz-nos que entrámos na Herzegovina e, dali a nada, o grande rio Neretva vem ao nosso encontro, como a dar-nos as boas vindas. A paisagem muda um bocado, na Herzegovina. As montanhas continuam, imponentes, mas as árvores são mais escassas. Dentro do autocarro há ar condicionado, vamos bem, eu, as americanas, o metaleiro, as personagens da revista cor-de-rosa que a senhora lê e os restantes passageiros. E por fim, chegamos a Mostar. Terrível cidade, me parece, mal ponho os pés na estação. O calor é insuportável. Nem o consigo descrever. Tenho a certeza que se ficasse ao sol mais de 5 minutos me incendiaria. Entro na estação, para comprar o bilhete para Split, para sexta-feira. 20 marcos bósnios. 4 horas de viagem. Plataforma 4. A mulher da bilheteira parece uma máquina.
Saio de novo para o calor e para a fealdade de Mostar. Não há táxis. Arranjo uma sombra e ponho-me a derreter, com as malas. Por fim, aparece um táxi em contra mão (?) com dois homens lá dentro. O condutor diz-me que são 5 marcos bósnios. Eu entro, já estou por tudo. Quero sair daqui, regressar a Sarajevo, qualquer coisa, mas sair desta estação horrível, deste calor insustentável. Dentro do táxi, o rádio toca muito alto uma música horrível. Um dos homens fala comigo insistentemente em bósnio e eu não percebo nada e só penso ‘puta que pariu isto (pardon my french), caí, com toda a propriedade agora, num filme do Emir Kusturica, estes dois vão raptar-me e vender-me às postas a um restaurante vietnamita’.
Vou a derreter neste carro cinematográfico, à moda dos balcãs, quando o taxista se mete por cima de um passeio e entra na estrada do outro lado. Bonito. Não me vendem às postas, afinal, matam-me assim, do coração, ou esmagada por outro carro. Vou nestes delírios, deve ser do calor, a ouvir o rádio e os dois homens, quando no meio da estrada, com um trânsito intenso, uma menina de uns quatro anos, caminha e mendiga. É a imagem mais miserável do mundo e eu páro com os meus delírios e só me apetece vomitar. Penso: ‘que porra’. Devem estar 45º e a menina caminha no meio do trânsito numa cidade em que parte do centro é património da humanidade. ‘Porra, que vim eu aqui fazer? A ponte podia vê-la nos postais e em websites. É uma dessas imagens de calendário e caixas de chocolates, nem precisa de confirmação’.
Não sei como, o taxista chega ao hotel. Estou mais ou menos inteira, à parte o coração. O hotel parece fresco, mas detesto-o imediatamente. É um daqueles hoteis a ‘armar ao pingarelho’ mas onde nada funciona bem. Enfim, são apenas duas noites, há ar condicionado no quarto e está tudo limpo. Esqueçamos isto. Não o recomendo, no entanto. Que diferença do encantador Macek em Ljubljana Que diferença do modesto, mas bonito, Vila Wienn em Sarajevo!
Depressa descubro, quando finalmente arranjo coragem para enfrentar o calor e sair do hotel, que todo o centro histórico de Mostar (uma área miníma) é a ‘armar ao pingarelho’. Que Alá e os outros deuses todos me dêem paciência para aguentar tanta loja igual, tanta quinquilharia igual, tanta gente igual que por aqui se passeia, tanto café igual, tanto restaurante igual! Esqueçam tudo o que ouviram sobre o garrafão da ponte 25 de Abril! Os verdadeiros engarrafamentos, embora de peões, são na ponte otomana de Mostar (enfim, uma reconstrução), na Stari Most. A ponte é absolutamente magnífica, não me interpretem mal. As ruas a seu redor, soberbas. Mas dava tudo, nesta tarde, para estar em Sarajevo e não no meio desta terrível e escaldante confusão, com um cenário à Walt Disney.
De mau humor vou caminhando devagar e tirando (muitas) fotografias. Ao menos que fiquem os postais. Começo a subir a Brace Fejica cansada das lojas, da gente, da confusão, e encontro, do lado direito uma mesquita. Entro. O pátio – pasme-se! – é um centro comercial! Mais tralha, mais gente. De repente vejo um cartaz que anuncia a ‘melhor vista da ponte’. 4 marcos bósnios para atravessar o portão. Digo ao rapaz: ‘so… you are selling the view?!’ Ele diz-me que vá com ele, coloca-me em frente a uma vista sublime e pergunta-me: ‘e não vale a pena?’. Vale. Não só porque a vista é, exatamente, sublime, como porque não está ali ninguém ou praticamente ninguém. Dou-lhe o dinheiro e ele conta-me a história da ponte otomana, da destruição durante a guerra, da reconstrução relativamente recente*. Fala-me igualmente da cruz no monte em frente. De novo as tensões. Desta vez entre a Herzegovina e a Croácia**. De novo o mesmo deus, ou muitos, em várias casas. De novo deus que não parece estar em lugar nenhum.
Dou os 2 euros por bem empregues. Ali ao lado, com a mesma vista, um café lindo, sossegado, fresco, sob as árvores. Sento-me e peço um café turco e água. O senhor, tão gentil, traz-me um café maravilhoso. Forte. E água com muito gelo. Fico para ali. Além de mim, estão mais 3 ou 4 pessoas no café. O silêncio é reconfortante como a sombra. À minha frente, a ponte. A ponte que é o símbolo da união entre culturas e religiões. Talvez os calendários e as caixas de chocolates não lhe façam jus, afinal.
De repente as cigarras começam a cantar. Juro que é a primeira vez, este verão, que ouço cigarras. Tinha falado nisso com o meu pai – da ausência do canto das cigarras – antes de vir, em Lisboa. Fico para ali, o café bebido, a ouvir as cigarras. Já não estou mal humorada, portanto. E fico ainda menos quando começa o Azan. As cigarras de Mostar misturam-se com a convocação à oração muçulmana numa beleza tão tranquila que, decido não desdenhar já de Mostar. Saio do café mal acaba o Azan (um dia destes ainda me converto, se calhar). Decido contornar o centro e assim faço. O sossego continua nestas ruas que já não são património da humanidade mas que, a mim, me parecem mais bonitas, pelo sossego. Caminho pela M Tita até à Lucki Most (outra ponte) e surpreende-me outra vista da Stari Most.
Logo à frente está a rua do hotel, à direita. Antes, porém, desço ao Neretva. Há muito lixo, cães e pessoas a banharem-se nas àguas que me parecem frescas, apesar de tudo. Dali, outras vistas do património da humanidade. Vistas que não são pagas.Vistas com lixo à mistura. Sento-me num muro a ouvir as pessoas e a àgua e depois regresso ao hotel. No quarto está fresco.
Saio para jantar, mais tarde. Muito pouca gente na rua. É verdade, Mostar tem esta particularidade de ser visitada num só dia. As pessoas vêm, vêem a ponte e vão-se embora. Devia ter, provavelmnte, feito o mesmo, mas gosto de dar algum tempo aos lugares. Janto num restaurante com uma vista magnífica sobre a ponte. Há calma e escuridão. Ouve-se de novo o Azan. As cigarras devem estar já a dormir. A menina da estrada talvez também esteja. Assim desejo.
* e ** talvez amanhã me apeteça escrever sobre isto. Entretanto consultem o site da UNESCO: http://whc.unesco.org/en/list/946
A reconciliação bem humorada com Mostar… mas eu nunca me reconciliaria com esse calor!
Beijos.
sim, é difícil… mas há sempre uns recantos fescos (ou menos quentes).