É quando o chão treme que mais importa que as fundações de uma edificação sejam sólidas e resilientes. E se o terreno da diplomacia tem sido abanando durante o reinado de Trump. Está a Europa preparada para a instabilidade americana?
Nada existe para sempre, se bem que, no curto hiato temporal da nossa existência, por vezes tal pareça ser um truísmo. E, no entanto, basta olhar para as últimas décadas para constatarmos que a mudança tem sido uma constante em diversos níveis: O trabalho tem vindo a transformar-se em colaboração; a imagem, em fotografia e em vídeo, deixou de contar como testemunho; a Internet está a um passo de se transformar em jardins murados; e a tecnologia, que poderíamos julgar de todos é, como tem ficado claro que nem água, em grande parte dos americanos.
Se algo o caso EUA vs. Huawei tem mostrado ao mundo é que basta uma decisão de um presidente americano para que um país fique isolado em termos tecnológicos. Donald Trump declarou que a Huawei é uma ameaça à segurança dos americanos, o que desencadeou uma série de bloqueios a esta empresa:
- Deixou de poder contar com diversos serviços da Google, incluindo as actualizações de segurança;
- O fabricante de chips ARM interditou o seu uso;
- Os portáteis da marca deixaram de estar na Microsoft Store;
- A Huawei foi retirada do consórcio Wi-Fi;
- Poderá ficar proibida de usar a tecnologia Bluetooth se o respectivo consórcio também aplicar o despacho de Trump;
- Não pode incluir leitores de cartões SD Card nos seus telemóveis;
- Poderá vir a perder acesso ao GitHub, o maior repositório de código fonte open source, dado que a Microsoft, a actual dona do GitHub, ter adicionado às regras de exportação a indicação de que o conteúdo desenvolvido no GitHub precisa de respeitar as regras de exportação dos EUA, incluído a Export Administration Regulations (EAR), a mesma regulamentação que restringe a exportação de tecnologia para a Huawei e suas afiliadas.
São apenas alguns exemplos, já que a interdição estender-se-á a todas as empresas americanas exportadoras de tecnologia. As consequências começam-se a sentir em Inglaterra, onde os operadores de telecomunicações já se encontram a colocar as encomendas da marca em espera. E os próprios consumidores estão a ficar receosos, tal como se depreende pelo pico na afluência às lojas de troca de telemóveis em segunda mão.
Até agora Trump não mostrou evidências dessa ameaça de segurança existir de facto. Sendo real, bastar-lhe-ia proibir a importação de produtos da Huawei, em vez de ter proibido a exportação de tecnologia, com enorme impacto para a actividade da empresa em outros países, como na Europa.
Se for um bluff que está a fazer como parte das suas jogadas comerciais, será um enorme rombo na credibilidade da diplomacia americana. Recordando o Iraque, quem é que hoje acreditará nos americanos quando disserem que certo país tem armas de destruição maciça? E agora, se for um bluff, quem é que acreditará num futuro aviso sobre um perigo de segurança?
Atendendo às declarações recentes de Trump, poderá ser de facto um caso de bluff.
(O vídeo está disponível aqui, para quem quiser ver por si mesmo; começa por volta do minuto 41.)
Trump: A Huawei é algo que é muito perigoso. Olhem para o que eles têm feito do ponto de vista da segurança, do ponto de vista militar, é muito perigoso. Mas é possível que a Huawei até possa ser incluída em algum tipo de acordo comercial. Se fizermos um acordo, consigo imaginar a Huawei sendo possivelmente incluída de alguma forma, em alguma parte de um acordo comercial.
Repórter: Que aspecto teria?
Trump: Teria muito bom aspecto para nós.
Repórter: Mas quanto à Huawei, como é que o desenharia?
Trump: Oh, é demasiado cedo para dizer. Estamos apenas muito preocupados do ponto de vista da segurança.
Há aqui duas teses claramente apresentadas por Trump: Em primeiro lugar, as restrições à Huawei foram colocadas porque a empresa apresenta um risco de segurança e, em segundo lugar, que essas restrições poderiam ser parcialmente levantadas como parte de um acordo comercial.
Estas duas teses são incompatíveis. Ou melhor dizendo, apenas fazem sentido se a ameaça à segurança for um bluff. Não se pode negociar uma ameaça à segurança como parte de um acordo comercial pela simples razão de que a China não pode credivelmente prometer que irá deixar de espiar. Seja qual for o acordo que Trump assine, as agências de espionagem chinesas continuarão a tentar obter informação valiosa nos EUA. Se a Huawei era uma ameaça antes desse hipotético acordo, continuará a ser igualmente a mesma ameaça depois.
Regressando ao tema, a campanha eleitoral para as europeias podia ter sido um bom momento para discutir aspectos estratégicos, como a dependência tecnológica dos EUA. Tal não aconteceu, assim se demonstrando, mais uma vez, a inutilidade das campanhas eleitorais e do pendura dia de reflexão. Mesmo entre aqueles de quem se disse terem feito uma campanha séria, faltou muito pensar estratégico para este bloco de países a que chamamos de União Europeia. E o tema aqui em apreço é só um dos vários que não foram aflorados.
Li uma crónica no Público onde se exaltava o favor que Trump estava a fazer à democracia com o bloqueio à Huawei, apesar de todos os atropelos trazidos pelo próprio a essa mesma democracia. A tese resumia-se à constatação de a China ser um antro de abuso à liberdade individual, dando como exemplo o sistema de crédito social chinês. Sendo claramente um regime autoritário, não deixa de ser curioso ouvir estas vozes agora, depois de o Estado português ter entregue diversos sectores estratégicos à China. Mesmo fazendo tábua rasa sobre este duplo pensar relativamente à China, falta ainda explicar como é que o mesmo escrutínio não é feito em relação aos EUA, nomeadamente no que respeita a vigilância em massa, censura e controlo por via do capitalismo (surveillance capitalism).
O que nos leva à tese inicial. É preciso olhar para o mundo e compreender que nada é imutável, o que inclui repetir práticas sem reflexão, bem como esquecer que nada é dado como certo. Neste contexto, os europeus precisam de repensar o risco que representa a dependência tecnológica que temos perante os Estados Unidos. As acções de Trump, não só no que respeita à guerra comercial com diversos países, mas incluindo também a forma como lidou com os europeus na sua última visita, são a prova de quão importante isso é.
[Parte deste post, nomeadamente a citação de Trump e dissertação associada, foi baseado neste artigo]
os europeus precisam de repensar o risco que representa a dependência tecnológica que temos perante os Estados Unidos
Não somente a dependência tecnológica, mas também a dependência financeira.
Não há dependência financeira, há um grupo de países (Alemanha, Holanda, …) que acha que pode ganhar um jogo com as regras feitas por outro país.
A Europa tem mais que capacidade para se auto-financiar deixando-se de regras idiotas.
Obrigada, j.m.cordeiro, pela informação de tamanha importância que nos trouxe este seu post.
»» » …” os europeus precisam de repensar o risco que representa a dependência tecnológica que temos perante os Estados Unidos…”