E se houvesse um dia no ano em que pudéssemos visitar os nossos mortos e encontrá-los vivos? Partiríamos de comboio (vem-me à memória a viagem que fazem os sul-coreanos para visitar parentes e amigos na Coreia do Norte) rumo ao lugar deles, que eu gostaria de imaginar que fosse um bosque de carvalhos e tílias, mas apenas consigo ver um bloco de edifícios de traça austera, funcional, um lugar com longos corredores e salas pequenas, com uma única janela e um aquecedor de parede, e onde nos esperariam, à janela, os nossos mortos, sempre no mesmo dia, uma vez por ano. Ficaríamos todos juntos, cada um no seu cantinho da sala, famílias e amigos, num mesmo espaço partilhado, como nos hospitais e nas cadeias, a ouvir a conversa uns dos outros, a lamentar os que desperdiçam o dia discutindo e os que nada têm para dizer.
Com os mortos passaríamos o dia e eles estariam exactamente como os recordamos, e não achariam estranho ver-nos envelhecer a cada ano porque saberiam muito bem que estavam mortos e nós ainda não. Contar-lhes-íamos as novidades, mas não todas, só as que eles pudessem entender ou as que não lhes custassem demasiado, talvez eles também tivessem alguma para contar-nos, ou apenas falaríamos do passado, o nosso passado comum, até ao momento da despedida, ao fim da tarde, quando os funcionários fardados viessem comunicar-nos o fim da visita, num tom seco de burocrata, porque o regulamento das visitas deve ser rigoroso e naquele território de fronteira não pode haver incumprimentos. Voltaríamos ao tempo nosso, ao qual eles já não pertencem.
Acabo de escrever estas linhas e reparo que é uma má ideia, esta, porque talvez chegasse o ano em que já não desejaríamos fazer a visita. E ninguém merece uma segunda morte.
Dia de visita
19/03/2020 by Carla Romualdo
Filed Under: crónicas Tagged With: comboio, nossos mortos, visita
Já ouvi e li esse desejo muitas vezes e sempre tive a mesma opinião: se uma despedida custa tanto, só por masoquismo eu queria todos os anos despedir-me de pais, avós, filho, irmão…
E eu a lembrar-me de ter visto o “Coco” duas vezes! 😱
Carlinha, escreves bem e tens uma enorme veia poética. Por vezes os teus textos são verdadeiras metáforas. Mas olha que isto por aqui anda tudo muito rançoso. Pior que o Covid 19, só mesmo a actual caixa de comentários do Aventar. Só de máscara e luvas, e mesmo assim com muito cuidado.
Respeitosamente,
Um leitor atento