Quarto esquerdo
Depois de passarmos a porta de entrada, estamos no hall. À esquerda, encostado à parede, um armário antigo, castanho-escuro, baixo, com uma peça de cerâmica tão moderna que parece fazer gala da sua inutilidade. À direita, um bengaleiro que parece uma árvore seca.
Avançando uns passos e virando à esquerda, entramos na sala. Não é muito grande, quadrada. A mesa e as seis cadeiras de palhinha estão em bom estado. Na parede em frente, um aparador antigo: dois potes pequenos e várias molduras com fotografias.
Vale a pena, vale sempre a pena, ver as fotografias, especialmente quando estamos à vontade, sem a presença dos retratados. Da esquerda para a direita, há uma ordem que vai de tempos mais recentes para o passado, das cores até ao preto-e-branco. Aqui, está uma fotografia muito recente de três senhores de idade. Um deles é aquele que podemos ver, nesta mesma sala, sentado no sofá, morto. Outra fotografia com os mesmos homens um pouco mais novos, numa esplanada, fazendo um brinde para a câmara, sorrindo à ignorância da morte, sem perder tempo a pensar se será a última vez que brindam, como se fizesse sentido uma pessoa estar sempre a sorrir e a pensar que poderá ser a última vez. A fotografia mais antiga é a de um homem de chapéu, a olhar para uma distância.
Se nos sentarmos no sofá, ficaremos, então, ao lado do morto. O senhor Aguiar está morto. Foi há pouco tempo, estávamos nós a entrar em casa e ele a morrer. A televisão está desligada e a mão do senhor Aguiar está perto do comando. Esta não foi, portanto, a última vez que viu televisão.
Sentiu-se mal, uma impressão estranha que talvez fosse uma dor, um grito silencioso, a boca aberta do afogado que sente os pulmões a encherem-se de água. Estava sentado e ficou com a cabeça inclinada, na mesma atitude de sesta solitária em que vivia há uns anos, viúvo, com um sobrinho distante, um médico que não consegue sair do hospital, que dorme numa tenda de campanha, o sobrinho a quem batem palmas todos os dias às 22h na rua em que o tio acaba de morrer.
O senhor Aguiar tinha passado os últimos dias com medo do vírus, desinfectando tudo, incluindo algum correio que ficava ilegível ou destruído. Não queria morrer, ainda tinha coisas para fazer, coisas que gostaria de fazer pela penúltima vez.
Os vizinhos raramente o vêem, pelo que ainda levarão algum tempo a lembrar-se de que vive ali alguém. O sobrinho irá ficar preocupado, quando, daqui a dois dias, ligar e ninguém atender. Irá usar a chave, entrar em casa e chamar pelo tio, de máscara e de luvas, por não querer contaminá-lo.
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