Dignidade

«Aunty», Lee Byford-Daynes

 

As filhas da Dona Graça estavam certas de que a mãe já não tinha idade para dormir com o namorado. “Namorado”. Só o nome que ela lhe dava já lhes parecia ridículo. Uma mulher de 77 anos não tinha namorados. Vê-la de mão dada com ele pela rua era embaraçoso. Parecia-lhes uma manifestação de senilidade, sem dúvida, mas também de bizarria, porque havia algo de animalesco nesses apetites da mãe, e essa animalidade era um vexame para as filhas, ainda que ela parecesse incapaz de entendê-lo. A Mafalda até confessou que sentia a mesma vergonha que a fazia virar a cara quando, em criança, os cães copulavam à porta de casa e era preciso separá-los com um balde de água, mas a Joana achou a comparação excessiva.  [Read more…]

Oito apartamentos e um sótão (8)

Quarto esquerdo

 

Depois de passarmos a porta de entrada, estamos no hall. À esquerda, encostado à parede, um armário antigo, castanho-escuro, baixo, com uma peça de cerâmica tão moderna que parece fazer gala da sua inutilidade. À direita, um bengaleiro que parece uma árvore seca.

Avançando uns passos e virando à esquerda, entramos na sala. Não é muito grande, quadrada. A mesa e as seis cadeiras de palhinha estão em bom estado. Na parede em frente, um aparador antigo: dois potes pequenos e várias molduras com fotografias.

Vale a pena, vale sempre a pena, ver as fotografias, especialmente quando estamos à vontade, sem a presença dos retratados. Da esquerda para a direita, há uma ordem que vai de tempos mais recentes para o passado, das cores até ao preto-e-branco. Aqui, está uma fotografia muito recente de três senhores de idade. Um deles é aquele que podemos ver, nesta mesma sala, sentado no sofá, morto. Outra fotografia com os mesmos homens um pouco mais novos, numa esplanada, fazendo um brinde para a câmara, sorrindo à ignorância da morte, sem perder tempo a pensar se será a última vez que brindam, como se fizesse sentido uma pessoa estar sempre a sorrir e a pensar que poderá ser a última vez. A fotografia mais antiga é a de um homem de chapéu, a olhar para uma distância.

Se nos sentarmos no sofá, ficaremos, então, ao lado do morto. O senhor Aguiar está morto. Foi há pouco tempo, estávamos nós a entrar em casa e ele a morrer. A televisão está desligada e a mão do senhor Aguiar está perto do comando. Esta não foi, portanto, a última vez que viu televisão. [Read more…]

Oito apartamentos e um sótão (7)

Quarto direito

 

O senhor Joaquim Figueiredo e a sua senhora, Maria como é evidente, já vivem no prédio há muitos anos, compraram o apartamento ainda na planta, como gostavam de lembrar, repetindo sempre as frases um do outro, para ocasional irritação de ambos, porque só o outro é que imita.

Tantos anos de convivência fizeram com que a senhora, mais faladora, contasse as histórias todas, incluindo aquelas em que não participara, como a passagem do marido pela Guerra Colonial. Maria descrevia, então, em pormenor, o cheiro a napalm, as balas tracejantes, as minas nas picadas e as idas às putas, porque a guerra é a guerra e um homem não é de ferro. O senhor Joaquim, nesta parte da narrativa, tinha sempre um sorriso entre o saudoso e o sádico, o que lhe valia invariavelmente um empurrão vagamente terno da mulher.

Estas histórias já estavam a ser contadas aos netos, ainda que a palavra “putas” passasse a “meninas”. A filha já tinha desistido de pedir aos pais que censurassem esta parte e tentava reprimir os pedidos insistentes dos netos para que a avó contasse as aventuras sexuais do avô, que, na realidade, eram mais sexuais do que aventuras.

O casamento já ia em mais de cinquenta anos, um contrato rigorosamente cumprido, um edifício antigo, com alguns remendos, mas sólido, como são os casamentos que não eram propriamente por amor, mas que acabavam numa convivência feita de alguma necessidade, de muitos deveres e um pouco de ternura muito disfarçada.

Certo dia, o senhor Joaquim sentiu-se fraco, parecia ter alguma temperatura, dificuldades em respirar, tudo muito parecido com os sintomas provocados pelo vírus. Com o agravamento, foi levado para o hospital, mostrando a fragilidade assustada dos velhos quando se despediu da mulher. Depois de algumas complicações, Joaquim Figueiredo morria, um número das estatísticas.

Maria ficou sozinha em casa, recusando o convite da filha, que já tinha um quarto para a mãe. “Ainda estou bem. Quando sair daqui, é para ir para um lar.” Aceitou que a filha passasse a deixar-lhe as compras à porta e divertia-se a dizer adeus aos netos, da varanda, quando vinham visitá-la aos fins-de-semana.

O tempo passou a correr ainda mais devagar. Sem o marido, deixava de ter refeições para cozinhar. Começou a investigar os caixotes e as gavetas de Joaquim, divertindo-se com álbuns de fotografias, viajando a um passado em que se faziam poses de estrela de cinema, o que a levava a elogiar-se a si própria: “Eras bem jeitosa, minha menina!”

Numa dessas incursões a um mundo de papéis amarelecidos, de facturas desnecessárias ou de fotografias a sépia, descobriu um molho de cartas embrulhadas por um atilho. Começou a lê-las e descobriu que o marido tivera um caso durante anos com uma mulher que tinha conhecido em Lisboa. O romance fora prolongado e tórrido, as cartas continham descrições e memórias picantes, momentos intensos, Maria não merecia sequer uma referência. Precisava de se vingar e resolveu ligar à filha:

  • Estou. Olha, descobri umas cartas que o teu pai me escreveu. Vou só ler-te algumas partes. Ora ouve.

Uma preguiça transcendental

Convocaram-me para ir convencer o Professor Castelo a cumprir o plano. Como habitualmente, a sua posição era irredutível. Tentei explicar-lhes que nunca tinha existido uma verdadeira amizade entre nós, apenas um fascínio juvenil da minha parte, que ele retribuiu com uma cortesia excessiva e não isenta de vaidade. E muitos anos haviam passado sem que voltássemos a ver-nos. Responderam-me que isso pouco importava porque já não restava ninguém que lhe fosse mais próximo.

Resignei-me, então, a voltar ao casarão fracamente iluminado e mal aquecido, onde numerosas vezes tropeçara em pilhas de livros e onde sucessivos gatos, que nunca cheguei a distinguir uns dos outros, bufavam à minha passagem como se chamassem “invasora!”. Mas não encontrei nada disso. A casa estava vazia, à excepção de meia dúzia de móveis essenciais, e de uns quantos caixotes que estavam a ser levados para um camião parado à porta.

É o vigésimo quinto camião que enchemos – esclareceu-me o jovem que me recebeu, de rosto meio escondido atrás de um dossier de capa negra, e que se apresentou como “o inventariador”. – Está praticamente tudo. Só falta o homem. Ou melhor, o cérebro. [Read more…]

Votar no projecto Almada Velha

Um projecto da Sarah Adamopoulos: teatro documental comunitário. É favor votar no Orçamento Participativo Portugal.

Uma história de amor

Conheci-os na enfermaria e, no que a estas linhas diz respeito, decidi chamar-lhes Maria e António. Ela já fez 80 anos, a ele falta-lhe pouco para lá chegar. São casados há muito tempo, tanto que ela já não recorda a vida sem ele. Ele deixou de saber como se chama, onde está, quem ela é, e passa boa parte do dia agitado, a tentar mover os dedos crispados pela artrose e a murmurar palavras ininteligíveis, e foi isso que me chamou a atenção, ainda antes de conhecê-la a ela. Tantas horas passadas a tentar falar, um tão grande esforço para articular palavras, que poderá ter ele para dizer-nos? Importar-lhe-á se conseguimos decifrá-las ou não? Sorrio-lhe, fraco consolo, sou tão desconhecida para ele como aqueles com quem passou a vida, não entendi uma palavra de todas as que ele pronunciou, e duvido que ele veja esse sorriso do lado de lá da névoa que lhe cobriu os olhos.

Só mais tarde a conheci a ela, uma mulher de passos inseguros, parece hesitar antes de pousar cada pé no chão. É bonita, tem um olhar inteligente e essa avidez de conversa de quem passa os dias só. Vivem um com o outro, sem filhos, e é ela quem trata dele, com a ajuda de uma cuidadora do centro de dia local. [Read more…]

Felicidade tem U

Procuro notícias interessantes no PÚBLICO de hoje…

“Tal como nós, os orangotangos e os chimpanzés são mais felizes no início da vida e quando ficam mais velhos (…). A curva da felicidade ao longo da vida tem a forma de um U, os portugueses são mais felizes aos 66 anos. (…) Acontece aos homens e às mulheres, aos solteiros e aos casados, aos ricos e aos pobres, aos que têm filhos e aos que não têm“, disse então o economista Andrew Oswald sobre a crise da meia-idade, quando divulgou os resultados do trabalho na revista Social Science & Medicine.”

“Esperávamos compreender o famoso quebra-cabeças do padrão da felicidade humana e acabámos por mostrar que não pode ser por causa de empréstimos, divórcios, telemóveis ou outra parafernália da vida moderna“, diz Oswald. “Os símios não têm nada disso, mas têm uma crise de meia-idade pronunciada.

Ideias que não passam de estatísticas e estudos para «cientista ver» e que não acrescentam nada à nossa vida.

Mas vamos lá contrariar este estudo e aquele U! E trabalhar para sermos mais felizes na meia-idade!!

P.s.- a felicidade interessa!

Quando um filho morre primeiro…

Penso neste assunto muitas vezes…

Hoje, ao ler o DN de 7 de junho, que andava perdido no balcão da receção da minha escola, uma notícia de última página chamou-me à atenção: a filha do tão conhecido arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer morreu na passada quarta-feira, aos 82 anos. O seu pai já vai com 104 e, no mês passado, esteve internado 15 dias no hospital. Estava ansioso por voltar a trabalhar!

Este homem tem mais de um século de vida. Não é comum alguém atingir a sua idade. Viu morrer muitos amigos e muitas pessoas de família. Está mais só. Muito mais só agora, sem a filha, a única. Saberá Niemeyer enfrentar duma forma mais sábia a morte dum filho? Será para ele a morte algo mais «natural» que para o resto dos mortais?

O trabalho poderá ser a sua grande companhia.

Lamento imenso a morte de Anna Maria.

(Lamento imenso a morte dos filhos de quem quer que seja ainda vivo).

Espero que a criação de Niemeyer não termine por aqui…

Dia do Planeta Terra

Algumas ideias avulsas que me ocorre dizer neste dia…

A população mundial chegou aos 7 mil milhões, mas está muito envelhecida e não sabe lidar bem com isso. 

Os idosos morrem sós…

O Homem ainda não aprendeu a aceitar as rugas no rosto e no resto do corpo por mais voltas que a Terra dê. Muito menos a natural morte por mais que assista à das plantas e dos animais e de tantos seres humanos ao seu redor.

A esperança média de vida aumentou, mas morremos por doenças diferentes às que matavam no passado. Doenças deste tempo: ansiedade, stress, depressão e outras bem nossas conhecidas. [Read more…]

Morram mais cedo, a bem ou a mal

Imagine que escrevia aqui que um organismo internacional, ligado à ONU, sugeriu aos governos deste mundo que baixem as pensões de reforma dado o risco de as pessoas viverem mais tempo do que aquele que está previsto, dando cabo da economia, recomendando mesmo que a idade de reforma se aproxime da esperança média de vida.

Claro que me chamariam tolinho, no mínimo, e seria mais uma vez acusado de esquerdista paranóico ou coisa que o valha.

Passa pela cabeça de alguém que em pleno séc. XXI alguém queira combater o prolongamento da vida das pessoas reduzindo-as à miséria e obrigando-as a trabalhar até caírem para o lado?

Claro que não. Só passou pela cabeça do FMI, que não é composto por pessoas, nem publica análises escritas por humanos. Sejamos rigorosos: o FMI é composto por filhosdaputa e vai parindo umas coisas escritas por animais irracionais. Não, não estou a delirar, está no El País.

E já agora acrescento: a economia começa a estar para a ciência como a medicina esteve para a mesma há uns 100 e tal anos, no tempo da eugenia que descambou no nazismo. Eles andam aí.

obrigado pela dica,Carla Romualdo.

As crianças crescem

imagem noticias

(texto em quatro andamentos, escrito velozmente ao som de Tchaikowsky)

Para o meu primo consanguíneo Pablo Morales Redondo, falecido anteontem

Pequena introdução

Éramos 21 primos consanguíneos, filhos de cinco imãs e de um único irmão. As nossas férias ou eram na nossa quinta de Laguna Verde, sempre juntos, ou nas várias fazendas da família. Sempre juntos, agrupados apenas por grupos de idades. Pablo era o rei dos primos, o mais velho, o mais elegante, o mais sábio. Sabia partilhar a sua sã alegria com os seus pais e as suas irmãs. Ironias do destino: nasceu num primeiro de [Read more…]

Até que a morte nos aproxime

Comecei a morrer há alguns anos, quando ainda respirava, o que é só um sinal aparente de vida. Comecei a morrer quando já não conseguia contar as rugas, quando o simples acto de caminhar se transformou em ginástica. Comecei a morrer, quando tudo em mim se tornou incómodo: a incontinência, os nomes que me fugiam da cabeça, a tendência para contar várias vezes as mesmas histórias, a dificuldade em perceber os programas de televisão. Passei a viver num cemitério e morri em casa. Parece que, de vez em quando, davam pela minha falta, o que é diferente de sentirem a minha falta, claro. Se alguém sentisse a minha falta, talvez não tivesse morrido tanto como morri. [Read more…]

Como um pássaro no arame

Quando todos os cantores se transformaram em bombas sexuais, e as vozes se fizeram secundárias em face dos olhares sedutores, das poses de divas ou semi-deuses, e nos perguntamos que espaço teria Ella Fitzgerald, por exemplo, se nascesse agora, eis que irrompem os primeiros acordes da valsa e entra o veterano Leonard Cohen, que, de fato riscado e borsalino a velar-lhe os olhos, enche o palco com sua esplêndida velhice.

Já não se vêem velhos em palco, repararam? A velhice, tão inestética, é escondida ou travestida com grotescas máscaras de falsa juventude. Madonna esconde uns impossíveis 50 anos com coreografias acrobáticas, e apenas os Stones exibem o mapa rugoso das suas faces mas não assumem a condição de velhos. São, antes, eternos jovens gastos pelas muitas infracções.

Mas Cohen é um velho. Os dedos ossudos dedilham a guitarra, o olhar fixa-se num ponto distante que não conseguimos alcançar, e as canções já tantas vezes tocadas saem de novo à luz e revivem uma outra vez, antes do regresso à sombra. A voz envelheceu, perdeu brilho e amplitude, fragilizou-se e Cohen não tenta iludi-lo.

Mas as canções ganharam densidade, a melancolia enriqueceu-se com um travo de ironia, e a alegria não perdeu luminosidade mas tornou-se sábia. Assombradas pela figura agora frágil do seu trovador, as palavras ardem, consomem-se, amanhã renascerão das cinzas. Como aquela que começa assim… “Well my friends are gone and my hair is gray / I ache in the places where I used to play”…