O país em que é proibido ser-se adulto

“Portugal não é Pátria mas país”
Ruy Belo, que nasceu há 80 anos

Joana Manuel, que é muita gente ao mesmo tempo, explica como é que Portugal, que era um país em que as pessoas eram impedidas de ser jovens, se transformou num sítio em que são impedidas de ser adultas. País ou sítio. Pátria é outra coisa.

Canal apeloPortugal

Do outro lado…

               

De um recorte de jornal.

Há dias, revendo recortes velhos e amarelos, um deles chamou-me à atenção. Não propriamente pelo motivo pelo qual o guardei em 16 de junho de 2006 (David Mourão-Ferreira) mas, justamente, pelo que descobri nas costas do mesmo.

Havia retalhado um quadrado com referência ao documentário Duvidadávida dedicado ao poeta quando se completavam dez anos após a sua morte. Nessa sexta-feira, sublinhei na folha do jornal: “Que dúvida Que dívida Que dádiva/Que duvidadávida afinal a vida”. No documentário produzido pela RTP, podia ouvir-se a voz de Mourão-Ferreira numa das últimas entrevistas, já muito doente, a dizer-nos “o quão extraordinário é a vida e a maravilha que é estarmos vivos”.

Há poucos dias, como ia dizendo, vi, com outros olhos (ou efetivamente pela primeira vez), o outro lado: uma foto do actor João Castro encenando Na Morte de Marilyn, um poema de Ruy Belo. Tirei da estante o único livro que tenho de Ruy Belo (A Obra Poética) e ah! lá estava ele: [Read more…]

Oh as casas as casas as casas*

Percorro essas estradas municipais já quase abandonadas, que a cada ano perdem alguns centímetros para a floresta de eucalipto, e descubro as espantosas casas do interior do país.

Em lugarejos esquecidos, rodeadas de árvores que crescem à revelia dos homens, erguem-se essas construções impossíveis: casarões com telhados de duas águas, jardins perfeitos aos quais nem sequer falta uma descomunal fonte de pedra, chalets improváveis num cenário desolado.

Estas casas estão feitas de cimento e pedra e frustrações longamente sublimadas, de humilhações, sacrifícios, do orgulho apertado nos dentes por muito, muito tempo. Por isso são únicas e incongruentes, não pertencem ao sítio onde estão mas tampouco poderiam estar noutro lugar, nascem e vivem ao lado do cão que fica longo tempo a olhar os forasteiros, do monte de sucata enferrujada, do poço seco, do ribeiro que já arrastou homens mas agora perdeu a força e esvai-se num fio de água enlameada.

É raro ver-se gente nessas casas, ou um baloiço, ou um par de botas no jardim. Como fantasmas, erguem-se solitárias, miragens urbanas no deserto da estrada, a tal ponto que não sabemos se as sonhámos, se desejámos vê-las para nos tranquilizarmos com a presença do humano numa estrada por demasiado tempo deserta.

Casas estranhamente belas, casas sólidas, para resistir aos temporais das serranias, casas que não morrerão tão cedo mas que já parecem quebradas por dentro, sem o sopro vital que também anima as casas. Casas que, na sua solidão altiva e absurda, me parecem, por instantes, um retrato do país, e, também por isso, ainda mais tocantes e insuportáveis.

* “As Casas”, Ruy Belo, Todos os Poemas, Assírio & Alvim, 2000