Postcards from the Balkans #06

Sarajevo: 1425, 159, 329, 11000

ou o mesmo céu sob o qual vivemos

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Dizem aqui que se nunca vieste a Sarajevo, nunca foste a lado nenhum.

Sarajevo. O lugar que reúne 4 das casas de deus. O mesmo deus a quem se pedem desejos. Os mesmos desejos. Dizem aqui que se pedires a deus o mesmo desejo nas suas 4 casas (mesquita, sinagoga, igreja ortodoxa e igreja católica romana) obterás o que procuras. Não experimento, no entanto. Os meus desejos são simples e terrenos. Mais do que de deus – a existir seja em que casa for, ou em toda a parte – os meus desejos dependem de mim. Dos Homens, que vivem todos debaixo do mesmo céu. Qualquer que seja o deus – mesmo nenhum – em que acreditam. Os meus desejos são poucos, está bem de ver.

Sarajevo é um símbolo de multiculturalidade étnica e religiosa. Os sinos das torres das igrejas ouvem-se quase ao mesmo tempo que o chamamento (tão belo) para a oração dos muçulmanos. Os homens amam mulheres de outra religião. As mulheres amam esses homens. Como se a religião não importasse, num lugar onde importa tanto. Os mortos são, em muitos cemitérios (e há tantos cemitérios em Sarajevo!), enterrados debaixo da mesma terra. Com o mesmo céu por cima. Há beleza bastante em tudo isto. Há humanidade bastante em tudo isto.

Se vens a Sarajevo não é possível que não saibas, ou que não queiras saber, o que é, o que foi, o que há-de ser Sarajevo. Não é possível que não perguntes onde estava deus há quase 20 anos. Se escondido dos Homens, numa das suas 4 casas ou acima do céu sob o qual vivemos, o mesmo é dizer em lugar nenhum.

5 de Abril de 1992. Onde estava deus? 1425 dias de cerco a Sarajevo. Uma cidade sem eletricidade, sem água, sem hospitais, sem escolas, sem aquecimento, sem comida. Onde esteve deus durante os 1425 dias que durou o cerco a Sarajevo, o mais longo da história da Europa desde a 2ª Guerra Mundial? E onde estavam os Homens? Durante o cerco, que se prolongou até Novembro de 1995, cada pessoa dispunha, em média, de 159 gramas de comida por dia, na maioria arroz e bolachas americanas dos anos 50. Durante o cerco – 1425 dias – em média 329 granadas explodiam em Sarajevo, diariamente. No fim do cerco cerca de 11000 pessoas (das cerca de 300000 cercadas) morreram. Há tantos cemitérios em Sarajevo! Tantos memoriais, assinalando os lugares (tantos!) das mortes e dos massacres. 1425 dias debaixo do mesmo céu em que vivemos. E não fizemos nada por estas pessoas. Não fazemos nunca nada por pessoas como estas, hoje, debaixo do mesmo céu. Pessoas que tentaram defender-se, com poucas armas e com apenas uma saída. O túnel debaixo do aeroporto. De onde partiam os aviões que cruzavam o céu. O mesmo sob o qual vivemos.

Fuad era uma criança quando começou o cerco. Um jovem rapaz, quando o mesmo terminou. Fuad viveu 1425 dias quase sem sair de casa. Barricado. Cercado. Como muitos outros. Perdeu amigos e familiares. Enterrados nos muitos cemitérios de Sarajevo. Hoje Fuad, que estudou Sociologia na Universidade de Sarajevo, é guia turístico. Um guia fenomenal, deve dizer-se. Eu nunca fiz isto antes. Isto, quero dizer, fazer visitas com um guia, com um grupo. Mas se vens a Sarajevo e queres perceber – será sempre minmamente – o que aqui aconteceu… não há outra maneira. E pela primeira vez fiz uma visita guiada, em grupo, numa cidade. Uma visita que devia durar 3 horas e durou 10, para quase todos nós, deste grupo. Sem custar mais por isso. O que, num sítio como Sarajevo, ou em qualquer outro, será sempre uma coisa extraordinária.

Visitámos muitos sítios, de vida e de morte. Sítios onde não te apetece sequer tirar fotografias. Por pudor, talvez, ou por outra coisa qualquer que não consigo explicar. Entre as 11 e as 15 horas subimos ao castelo de Jajce, passeámos entre os mortos do cemitério e memorial de Kovaci, passámos no cemitério misto da cidade olímpica, cruzámos a ‘estrada dos Chetniks’, a única saída do cerco que quase ninguém (a não ser a UNPROFOR, os jornalistas internacionais e os próprios Chetniks) conseguia percorrer. Vimos os lugares dos massacres e das violações. Visitámos também a outra saída (e entrada de alguma comida, armamento e ajuda humanitária) do cerco: o túnel de Sarajevo, em Dobrinja. O túnel tinha 800 metros de comprimento (fazia a ligação a Butmir, do lado do território não cercado), 1,60m de altura e 1m de largura. Podem visitar-se hoje 25m deste túnel e a sensação é impressionante. Vimos tudo isto e, no entanto, nada vimos. Ou muito pouco pudemos ver do que realmente aconteceu. 1425 dias.

A visita faz-se enquanto o Fuad nos conta como era a vida durante o cerco, nos conta como a guerra mudou o quotidiano e as perspetivas de cada um sobre o mundo. Há uma enorme mágoa contra nós. Os outros Europeus que deixámos que tudo isto acontecesse diante dos nossos olhos. Indiferentes. Onde estávamos?

Sou a única não italiana num grupo de 12 pessoas. Eu e o Fuad, bem entendido. Perguntaram-me que língua preferia entre castelhano, italiano e inglês. Obviamente, preferi o italiano. Como se a beleza desta língua que amo tanto pudesse espalhar doçura (la dolcezza) sobre os factos, as imagens, os grandes cemitérios brancos debaixo do mesmo céu sob o qual vivemos. Pode.

Às 15h, quando a visita acaba oficialmente, alguém sugere que vamos almoçar todos juntos. Sento-me a uma mesa com o Fuad (o meu colega sociólogo), um casal e um outro homem que com ele viaja. Falamos muito disto e daquilo. Sou a única pessoa a viajar sozinha, no grupo e o homem pergunta-me porquê. E diz-me que uma mulher não deve viajar sozinha. Digo que é justamente o contrário, que deve e mais… digo que gosto e que em toda a parte onde fui sozinha encontrei sempre gentileza. Ele compreende. Acho. Também gosta de viajar sozinho. Mas a pé, principalmente. E é um homem. Não sei porquê, quando chega a hora de pagar ele diz que paga o almoço dele e o ‘de Elisabetta’. Digo que não, mas porquê? Nem pensar! Diz que o quer fazer e pronto. Que somos amigos inaugurados ali mesmo. Nunca um desconhecido me pagou, assim de repente, sem razão nenhuma, um almoço. Grazie mille! Afinal, há almoços grátis. Genuinamente.

Entretanto alguém sugere que vamos beber um verdadeiro café bósnio, preparado de modo semelhante ao turco, todos juntos. São 5 da tarde. Vamos. Bebemos o café sob as árvores. O café é bom e forte. E alguém volta a sugerir que jantemos juntos, mais tarde. E jantamos juntos mais tarde e trocamos emails, contactos de facebook. O homem do almoço diz que não tem email, nem facebook, mas que encontra toda a gente, se quiser, seja onde for. Eu rio-me. E digo ‘se não tens facebook, hoje, é como se não existisses. Como se não estivesses em lugar nenhum’. Todos os outros concordam, menos ele. É evidente que existe.

Dizemos adeus, muita comida bósnia, cerveja e café depois. Dizem-me todos que quando voltar a itália (sou, já o disse, a única não italiana do grupo) que os informe. Naturalmente digo o mesmo a todos, que quando forem a Portugal me digam. O homem do almoço diz-me, então, que embora não tenha email nem facebook, me há-de encontrar em Portugal. Em Aveiro, mais ou menos 70 km abaixo do Porto. Eu olho-o espantada. Ele diz: ‘lembro-me de todas as coisas’. Os outros riem-se. Acabo por me rir também, enquanto penso nos cercos que construímos sobre nós mesmos, tantas vezes. E no quanto é fácil destruí-los. Existimos todos debaixo do mesmo céu. A vida é simples. E o italiano é a língua mais bonita do mundo. Ou seria, se o napolitano não existisse.

Comments


  1. Deus… sem querer chocar, é a desculpa perfeita de quase todas as atrocidades!
    Um beijo (sem deus).


  2. a mim não me choca nada. outro.