Ars moriendi

Uns 20 anos antes de eu nascer, certa mulher da minha família ganhava a vida a assistir a missas pela alma de perfeitos desconhecidos. Nem sempre seriam desconhecidos, claro, a cidade era uma aldeia, mas o que quero dizer é que não existia nenhum laço entre ela e os defuntos a não ser esse, contratual, e que nem fora da iniciativa deles. Pagavam-lhe os enlutados para estar presente durante a cerimónia e para rezar pela alma que partira, cedo ou tarde e provavelmente descontente, porque eles, os que deveriam fazê-lo, não tinham paciência, tempo, ânimo, o que fosse. E assim ganhava ela a vida, correndo igrejas, rezando aqui e ali por um Manuel, uma Alfredina, um Viriato, sem deles nada saber, tão só que levavam uma semana, um mês, um ano mortos, e que quem ficara ainda os lembrava  ou tinha, pelo menos, medo de enfrentar a sua raiva além-túmulo se as missas devidas ficassem por dizer.

Nunca o negócio lhe permitiu outra coisa a não ser uma vida miserável, um casebre, meia sardinha no tasco ao jantar. Mas para quem tinha uma saúde incerta e um corpito que não chegava aos cinquenta quilos, sempre era uma actividade que não pedia ao físico o que ele não podia dar. Confesso que gostava de saber se ela de facto rezava, ou se ia dormitando nos bancos de madeira, habituada a dormir sentada, com os cotovelos agarrados, para manter o corpo direito, e se acordava assarapantada com o berro despropositado de um padre iracundo, se alguma vez se perguntaria pelo falecido, quem foi e em que paragem do Além estaria, se as chamas do inferno o consumiam e aquela missa seria um chuveirinho, humilde refrigério, no seu penar. Suspeito, pelo pouco que dela sei, que dedicaria o tempo a pensar em temas mundanos, como por exemplo o seu mundano marido, mas essa é outra história.

A morte não iguala ricos e pobres, pelo menos no que daqui podemos ver dela, que do outro lado pouco se vislumbra. Os ricos podem, pelo menos, aspirar a que se recorde o seu nome, uma placa num monumento tumular, uma efígie, houve tempos em que os seus testamentos previam até serviços religiosos perpétuos pela salvação da sua alma, e que ingénuo nos parece esse “perpétuos”.

Recordo ler com grande surpresa (“oh youth!”) o historiador Philippe Ariès revelar, na sua História da Morte no Ocidente, que os ossinhos com que se fabricavam os ornamentos macabros que adornavam as galerias onde estavam sepultados os defuntos ricos (sobretudo no século XVIII) provinham das fossas comuns, as “fossas de pobres”, nas quais não havia caixões nem placas com nome. Morria-se pobre e sem nome, e o máximo a que se poderia aspirar seria vir a ter um metatarso transformado em candelabro, a eternidade possível para o que fora do mundo, que onde estaria o resto não nos cabe saber.

Não muito longe de minha casa há um forno crematório, ao que parece com grande procura, onde se encerra um capítulo histórico de arte tumular, peregrinações a campas,  lavagem de lápides (esse ritual feminino que o Pedro Almodóvar filmou tão bem para a cena de abertura do “Volver”), afinal uma singela, doméstica eternidade. Sai-se de lá com a pequena urna, as cinzas acabarão no jardim do crematório, raramente num outro lugar escolhido pelo defunto, nem sempre ao abrigo das regras comunitárias de higiene. Não haverá lugar de romagem, campa com retrato, a placa com um nome e duas datas, todos os outros dias foram dele ou dela. E também isso pode ser um alívio para quem abomina cemitérios e o confronto com um túmulo que não consegue associar a quem amou em vida. Que dirão destes tempos os historiadores do futuro? Talvez representem uma mudança mais ampla, dessas que vistas demasiado de perto nem sempre podem ser apreciadas.

 

 

Comments

  1. aventanias says:

    É demais. Agora não me sai da cabeça o choro indiscritível das carpideiras profissionais, há 50 anos no funeral da minha avó paterna, lá para os lados de Nelas, na Beira Alta.
    É pior que estar assombrado !!

  2. Ouvi dizer que em Nápoles há o costume de se adoptar defuntos muito antigos nos cemitérios, mortos há séculos, e cuidam dos seus túmulos. É uma forma de fazer comunidade, também, digo eu que não estudei ciências sociais.

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