O que é a “cultura de retenção”?

Volta e não volta, quando há notícias de estatísticas negativas sobre reprovações, ressuscita do seu adormecimento a expressão “cultura de retenção”, eufemismo que serve para afirmar que as escolas e os professores, em vez de tentarem resolver verdadeiramente os problemas do insucesso, optam pelo facilitismo da reprovação.

 

João Costa, secretário de Estado da Educação, a uma pergunta sobre o elevado de número de retenções em algumas escolas, relembra a “cultura da retenção”:

“Estes dados refletem um problema conhecido e que justifica todo o investimento na promoção do sucesso escolar. Há uma cultura de retenção que atinge níveis muito preocupantes no ensino secundário.”

E ainda:

“A unidade de missão que coordena o Plano Nacional de Promoção de Sucesso Escolar está a trabalhar em conjunto com as escolas com piores resultados para as apoiar na sua autoavaliação e na avaliação da eficácia das suas medidas e em conjunto com as autarquias para estruturar medidas efetivas de apoio no que extravasa a competência da própria escola.”

Já lá voltaremos. Disparatemos um bocado, recorrendo a uma alegoria temperada com hipérboles, coisas da retórica. Da vida, portanto.

Imagine o leitor que um clube de futebol, crivado de dívidas (“crivado”, como é de tradição), escolhe o caminho da austeridade, usando de poupanças progressivas. Primeiro, obriga os atletas a jogar sem camisola; depois, para poupar mais, tira-lhes os calções; seguidamente, poupa nas chuteiras, para, finalmente, os obrigar a jogar descalços, que as meias, só em lavandaria, são uma despesa incomportável. Depois de perderem quinze jogos seguidos, em cuecas (extremamente dispendiosas, mas obrigatórias por causa do pudor), o presidente do clube, agastado, desceu ao balneário e repreendeu os jogadores: “Ó malta, vê-se que vocês têm uma cultura de derrota! É preciso ver o que é que andam a fazer mal e corrigir, porra!”

Os professores ainda podem dar aulas vestidos (o que se deve unicamente ao facto de o Ministério não ter de arcar com essa despesa), mas as frases, a um tempo pomposas e vazias, do secretário de Estado integram este sacudir de culpas para cima das escolas e dos professores. Alguém deveria explicar ao senhor secretário de Estado algumas coisas muito simples: o contexto socioeconómico do aluno condiciona o seu percurso escolar e os seus efeitos negativos podem ser combatidos com mais recursos humanos e menos alunos por turma, entre outras medidas que implicariam a reversão de muitos disparates que andam a ser cometidos desde 2005, ininterruptamente, em nome de uma austeridade pouco séria. Acrescente-se que isto deveria fazer-se, o mais tardar, no Primeiro Ciclo. Entretanto, seria interessante, para quem quisesse mesmo informar-se, investigar o mito da “cultura de retenção” – daria trabalho, é certo, mas é possível.

E, agora, a grande surpresa: só o Ministério da Educação é que pode tomar decisões que poderiam devolver condições às escolas, o que quer dizer que talvez fosse boa ideia, usando algumas palavras do senhor secretário do Estado, a unidade de missão que coordena o Plano Nacional de Promoção de Sucesso Escolar trabalhar em conjunto com o Ministério da Educação para o apoiar na sua auto-avaliação e na avaliação da eficácia das suas medidas, para estruturar medidas efectivas de apoio no que extravasa a competência da própria escola.

Comments

  1. Bruno Santos says:

    Texto muito bonito, muito bem escrito.

  2. Bento Caeiro says:

    Sobre questões que versam o assunto do ensino, ensinadores, ensinados e sobre as condições para que tudo se desenvolva, também quero disparatar um bocado, mas não sobre o pontapé-na-bola, que é assunto que me passa ao lado.
    É Inverno. Imaginem os alunos a chegar à escola primária – a única que há; muitos deles mal nutridos, descalços e cheios de frio. Entram na sala e retiram os seus cadernos e livros – aqueles que os têm – dos sacos de pano, feitos pelas mães em casa, ou de malas de cartão. São 44 alunos, mas só há 20 carteiras. Chega o professor. Os alunos levantam-se. O silêncio é total. Um dos alunos diz: «Senhor professor, podemos sentar-nos?». «Podem … Vamos à lição …, já sabem, quem não tiver livro vai para a carteira de quem o tiver; nas carteiras com três, senta-se no meio quem tiver livro. Despachem-se, vamos começar. Tu … vem para aqui, vais ler!».
    É meio-dia. Toca a campainha, os alunos saem a correr para ir a casa almoçar. Lá não está ninguém, os pais estão a trabalhar no campo. O rapaz, de 9 anos, chega a casa, há água quente na panela de barro que está à lareira. Chega a irmã, de 7 anos, que também anda na escola, mas numa ao lado. Muito rapidamente, esta coloca dois pratos na mesa e duas colheres. Parte pão às fatias – quase não consegue (mas isso não diz: é a sua tarefa) é pão com mais de 8 dias – e dividi-as pelos pratos. O irmão despeja para um pequeno tacho de barro alguma água já quente, a suficiente. Parte e lança – com cuidado – dois ovos lá para dentro. Enquanto isso, a irmã esmaga no almofariz dois dentes de alho e coentros, a que junta algum sal e, depois de tudo moído, uma colher de azeite (é, mesmo, apenas uma colher de azeite). Senta-se à mesa. O irmão traz o tacho para a mesa e com a colher retira do tacho os ovos, um para o prato da irmã, o outro para o seu. Põe a massa de alho, coentro e sal dentro da água e mexe. Prova de sal. Põe água sobre o pão dos pratos e sentam-se a comer.
    A escola não é perto, comeram muito rapidamente e saem a correr, para mais uma tarde de escola. O rapaz para a dele a rapariga para a dela. São escolas arrimadas, mas não ajuntadas. Como quem diz: escola para meninos e escola para meninas.
    Por tudo isto e, depois, por muito mais, sou a dizer, que o contexto socioeconómico pode influenciar ou, mesmo, condicionar o percurso escolar, mas não o determina; e, também, não se julgue que mais recursos humanos e menos alunos por turma resolverão, só por si, os problemas que, de facto, existem. Nomeadamente, num sistema de ensino que tem primado pelo experimentalismo pedagógico, mormente didáctico, onde será de incluir a forma como se recrutam e formam professores.
    Para finalizar, mas não acabando, há a dizer: quem está habituado a comer açorda com um ovo, já ficará muito satisfeito se for com um bocadinho de bacalhau. Contudo, quem se habitua a comer bife com ovo, muito dificilmente ficará satisfeito se tiver de comer, habitualmente, açorda com ovo.

  3. Mr José Oliveira Oliveira says:

    Ah querem promover o sucesso? Querem mesmo? Então comecem por reduzir o nº de alunos por turma, por exemplo ou reduzam a carga burocrática dos docentes para que eles se concentrem em ensinar.
    Ah, não querem? Então o que é que querem?