Postais da Raia #5 (Sabugal e arredores)

A Nave de Pedra

 

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«Quem vem de longe, das terras frescas do litoral, onde o verde salpica os olhos e se debruça nas estradas, e após a transição das ravinas do Zêzere, encontra uma paisagem que passo a passo se atormenta: a Beira Baixa. Aí, transposta que é a charneca com a sua cabeleira rala, nos cômoros a ferida aberta das ribeiras que descem ao Tejo por entre sobressaltos de xisto, ou ainda o dourado da campanha da Idanha, a querer-se alentejana sem o ser – aí, senhores, já a tristeza começa a espessar-se, a montanha crepita tendo por detrás relances de horizontes fundos, e as coisas se tornam graves. Ei-lo, um mundo de soledade, sobre que pesam crimes, mesmo se as frondes e as ramadas lhe escondem as dores do exílio.
 
Assim, de facto, o sentimos: remoto e em degredo. E Monsanto se chama, de pedra é feito – minha nave coalhada.» *
 

Talvez o postal de hoje pudessem ser apenas estas palavras de Fernando Namora, médico e habitante breve de Monsanto (de 1944 a 1946) e, claro, também escritor. A sua obra talvez mais conhecida – Retalhos da Vida de um Médico – é exatamente sobre esta vivência de breve habitante de lugares remotos ou do Portugal à época ainda mais profundo, exercendo medicina. Creio que estas palavras bastariam para descrever a viagem de hoje entre Sabugal e Penamacor primeiro, e entre esta vila e Monsanto depois, por estradas de curvas e contra~curvas, algumas rectas ladeadas de grandes árvores, onde nas bermas as vacas e as ovelhas pastam e contemplam, de vez em quando, os automóveis, pachorrentas. Quando se entra no concelho de Penamacor dá-se por isso, quero dizer é absolutamente nítida na paisagem a transição entre a Beira Alta e a Beira Baixa. Os carvalhais são substituídos por extensos olivais e os eucaliptos, quase inexistentes no concelho do Sabugal, surgem agora como parte importante da floresta. É verdade que, sobretudo nas zonas dos extensos olivais, a paisagem faz lembrar esse desejo de ser alentejana, que descreve Fernando Namora a propósito de Idanha-a-Nova.
 
Penamacor, onde se entra em rápida excursão, parece uma cidade esquecida, ligeiramente amarfanhada, como se atirada para um canto. Não apresenta o cuidado de outras que visitei agora, há um certo ar de desalinho e abandono. Do castelo vêem-se os olivais, numa paisagem gloriosa. Dali também se avistam os edifícios da Companhia Disciplinar de Penamacor, onde, entre outros, esteve, no final dos anos 30, Álvaro Cunhal. Estes edifícios apresentam-se preservados, agora constituídos em museu e aproveitados para albergar gabinetes da Câmara Municipal. Há algumas igrejas recuperadas, um gato preto com uma ferida na testa dorme sobre as pedras quentes e redondas da calçada e é isto Penamacor, vila onde não me recordava sequer de já ter vindo.
 
A seguir, Monsanto, a nave de pedra, onde nunca se sabe ‘se a casa nasce da rocha, se a rocha nasce da casa’, tal é a simbiose entre as grandes formações de granito e as construções. Pelo caminho, deixam-se para trás outras aldeias pitorescas como a do Bispo, a de João Pires e Medelim, Relva… e eis que Monsanto se ergue tão alto ‘que as águias a roçam com a asa’.
 
Vim duas vezes antes a Monsanto. A última, de certeza, há mais de 15 anos, que o tempo passa mesmo a correr. As casas e as rochas continuam a confundir-se numa simbiose perfeita. Há, continua a haver, portanto, casas dentro das rochas e rochas dentro das casas. A réplica do galo de prata que a aldeia conquistou em 1938 como a ‘Aldeia mais Portuguesa de Portugal’ lá está no cimo da torre da igreja e o título, esse, está em toda a parte agora – ‘a mercearia mais portuguesa’, ‘a casa mais portuguesa’… assim se anunciam aos visitantes as lojas e as ‘guest houses’ da aldeia. Há coisas novas, porém, por referência à minha última visita a Monsanto: as placas moderníssimas, de design arrojado, que nos indicam todas as atracções da aldeia, as placas explicativas, cafés e alojamentos locais novos e a Casa Zeca Afonso. Fico a saber que nos anos 70 José Afonso comprou aqui uma casa, uma ruína – que nunca foi reabilitada – e que essa casa será transformada em museu, numa iniciativa conjunta da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova e da Associação José Afonso. Parece-me bem. A casa é bonita, embora escondida dos caminhos principais, encravada entre outras e, já o disse, em ruínas.
 
Venho hoje a Monsanto, ter com o J. para lhe fazer uma entrevista. Estou de férias, mas já que estou por estas paragens aproveito a oportunidade. Foi-me indicado por outra entrevistada, há uns meses, como um exemplo excelente de alguém que tinha feito do rural a sua nova casa, na sequência mais ou menos direta da crise económica e financeira. Desde 2009, a nave de pedra é a nova casa do J. e da sua família, que entretanto cresceu. J. tem mesmo um penedo na sala da sua casa e uma esplanada empoleirada no alto de um outro. É nesta que conversamos, já passa das 3 da tarde, que o dia foi para ele muito ocupado, com tantos turistas para atender. Sem quaisquer raízes nesta área, também ele veio de longe, das terras frescas do litoral para mudar de vida, mudar as coisas nesta aldeia de 70 habitantes, 3 crianças, incluindo a sua. Quando lhe pergunto se é feliz com a vida que tem agora, aqui, no meio dos penedos, com a paisagem a querer-se alentejana que se abre à nossa frente, diz que sim. Mas nem era preciso perguntar-lhe porque a resposta já estava adivinhada no seu enorme sorriso de quem já pertence à nave de pedra.
 
*Fernando Namora: A Nave de Pedra – cadernos de um escritor, Bertrand Editora, 1975, p.9.
(Cró, 13 de agosto  de 2018)