Carta de amor e de eutanásia

[Pata Negra]

Amélia,

Espero que esta carta te vá encontrar de saúde que por cá a guerra não deixa que te dê boas notícias.

Estranharás a falta da palavra “querida” antes do teu nome mas reconhecerás certamente a caligrafia. Sou o Janardo, o amigo a quem o teu Bernardo tem ditado todas as cartas de amor que tens recebido. Sei que também tu és uma analfabeta e peço, por isso, à interposta pessoa que faça guarda do que te vou contar e que, tal como eu sempre faço, tenha com este serviço uma fidelidade inabalável ao dito e ao lido e um voto de segredo tão sagrado como o dum padre confessor.

Bem sabes, das missivas passadas, como é a vida da tropa no inverno das trincheiras mas o Bernardo nunca te disse que, por vezes, as ânsias de sair da podridão são tantas que recebemos com alívio as ordens para uma missão de reconhecimento nas hostes ou mesmo para fazer um avanço com fogo sobre as suas linhas. No passado dia 10 de Fevereiro, eu, o Bernardo e mais dois camaradas partimos, destemidos, para uma dessas arriscadas incursões. Os boches atacaram-nos, os outros dois caíram que nem tordos, o Bernardo ficou desfeito e moribundo mas ainda com vida para me fazer um último pedido.

Eu não fiz nada que não se tenha sempre feito desde que há guerras. Também o rei Saúl, ferido pelos soldados filisteus, ordenou ao seu escudeiro que o trespassasse com a espada. Sei que há bíblias que contam que o próprio Cristo não morreu na cruz mas horas depois, por ordem piedosa de Pôncio ao centurião Longinus que foi ao Calvário e o golpeou para pôr fim à Sua agonia. Enfim, de golpes do punhal-misericórdia está a História cheia e, se as cegas leis da Igreja ou da República não podem ver o amor com que se pode salvar um mortalmente ferido do sofrimento atroz, a luz de Deus me há-de acolher por tão heróico gesto. Se por acaso assim não for, que o inferno me tenha, que pelo menos lá não passarei o frio da Flandres.

Amélia, somente a ti devo esta confissão. Li todas as tuas cartas para o Bernardo, escrevi todas as cartas do Bernardo para ti e de tanto ele me contar da sua amada, passei também a desejar uma mulher assim. A morte e o sofrimento nunca deveriam andar juntos mas, se assim tem de ser, que cumpramos os desejos de quem parte. Antes do estertor do nosso amigo, dias antes, no clamor da guerra, ele havia-me feito o seu penúltimo pedido: que se por acaso esta merda – ele disse mesmo, merda – o levasse desta para melhor, conhecendo-me homem de carácter igual ao seu, que eu me arriscasse a propor-te o seu lugar no amor perante ti. Que acto grande este, Amélia, que a igual grandeza nos obriga!

Pode-te ser difícil aceitares-me mas vou dar-te prova de como estou comprometido a resolver o triângulo amoroso: se por acaso quiseres guardar a virgindade, o que eu não acredito, para a levares até aos céus ao Bernardo, para graça do Espírito Santo estou disposto a ser meio José, o carpinteiro e na outra metade, a desenrascar-me como nas licenças aprendemos por aqui, eu e o Bernardo, com mulheres que procurem satisfação, meretrizes ou até mesmo com a mão.

Se me deres tampa, sabe que não terei qualquer remorso, como não tenho daquele tiro que foi, provavelmente, o mais certo que nesta guerra dei.

Por fim, se hás-de aceitar, que não peças a Deus que eu não regresse à pátria, viril e inteiro, porque se tal vier a acontecer, que morra então. Se não tiver mãos para o fazer, hei-de pedir a alguém, valentes como eu não faltam nesta frente.

Agora sim, Querida
Amélia
Beijinhos do Janardo, basta quereres, teu.

 

Sou neto de avó solteira e o meu avô Janardo, que andou na guerra de 14, deixou-nos esta carta maravilhosa. Curiosamente, passados alguns anos, ele, que não morreu na guerra, também morreu.

Comments

  1. JgMenos says:

    Avaliando a coisa pela iguakdade de género a Amélia cumpriu o serviço (a) militar.

    • ZE LOPES says:

      Avaliando o presente contributo comentarial de JgMenos para a parvoíce somos levados a crer que também cumpre o serviço(a). Não o militar. O outro.

  2. Luís Lavoura says:

    Que carta tão bem escrita, com referências clássicas e tudo. Isto não parece carta de soldado raso na Grande Guerra, que esses, mesmo os que tinham a 4ª classe, jamais seriam capazes de escrever coisa tão fina.