A “culpa” do jornalismo

[Miguel Carvalho*]
Ah, e tal, o jornalismo é o principal culpado do resultado de André Ventura. Sempre a dar-lhe voz, a fazer pé de microfone, a execrá-lo ou a pensar no próximo bitaite incendiário que virá dali, pois sempre virá alguma coisa.
Bem, sou capaz de concordar que Ventura e o Chega têm tempo de palha em demasia. Digo tempo de palha porque uma boa parte da antena está sempre a salivar com zaragata.
Mas o que sugerem: que o jornalismo se demita da sua responsabilidade de investigar, de escrutinar, de contrastar, de trazer a público aquilo que leve os cidadãos a tomar decisões mais responsáveis e aprofundadas, mesmo se escolhem não o fazer?
O que sugerem: que fiquemos sentadinhos a ver o andor passar e fazer de conta que não há um entertainer político hábil que ocupou o espaço de sucessivas irrelevâncias partidárias, do esquecimento a que foi votada parte do País, do ressentimento acumulado por tanto submundo engravatado e promessa por cumprir?
O que sugerem: que o jornalismo abdique de prestar um serviço público, independentemente da sociedade valorizar esse esforço, ainda por cima em tempos de recursos esganados?

Estou à vontade: não escrevi sobre o Chega na versão “Portugal Sentado”, comentador encartado ou intelectual empedernido. Enquanto pude e a pandemia deixou, fui para o terreno, conversei com dezenas de militantes e dirigentes do partido para perceber o que os tinha trazido ali. Almocei e jantei com eles, sim. Encontrei extremistas, sim. Saudosos do “antigamente”? Também. Abstencionistas crónicos? Muitos. Trampolineiros? Ui, nem falar. Mas também gente genuinamente desiludida com os aparelhos partidários do PSD, do PS e do CDS. Encontrei quem tivesse votado Marisa Matias há uns anos, ex-fanáticos de Sócrates (muitos) e antigos comunistas de militância, caravana e bandeirinha (sim, no Alentejo, lamento. Convém olhar além das estatísticas ou para além da malha dos números…).
Tenho conversado com muita gente dita decente que, com o seu fanatismo ideológico, conservadorismo granítico e sebentas datadas, podem perfeitamente passar duas horas a discorrer sobre as suas convicções políticas e nem repararem que argumentam como se fossem potenciais Venturinhas, mas a armar que não. Muitos estão tão longe das realidades suburbanas e de província que basta falarem para que o apoio a Ventura se multiplique.
Por isso, um conselho de rua e de muito sapato gasto: antes de criticarem o trabalho dos que, neste lado, arriscam e batalham para ir além da espuma dos dias, levantem o rabinho da cadeira (assim que a pandemia deixar). Chamar fascista a Ventura ou grupo de nazis ao Chega é simples. Investigar os interesses à volta de Ventura e tentar perceber como muitos milhares de pessoas foram lá parar e porquê dá muito mais trabalho. Mas alguém tem de o fazer, já dizia o outro. Não perceber isso, ou não querer fazê-lo, diz muito mais sobre as fragilidades do argumentário contra Ventura do que sobre as entranhas do Chega.
O Chega é o íman de muitas coisas, a começar pelo ressentimento. Podemos descodificar Ventura, expor com quem anda e como se governa à boleia do sistema que diz combater, mas talvez não seja má ideia tentar compreender uma grande parte daquele eleitorado. De resto, comigo não há farinha: em tempos em que a moralidade política se trafica, à esquerda e à direita, sem pensar nas futuras gerações, o jornalismo continua a ser a melhor garantia de que a democracia não morre na escuridão.
*Jornalista, VISÃO
Texto copiado do facebook, com autorização do autor

Comments

  1. Hermínio Cerqueira says:

    Muito interessante, então fala-se de “jornalismo ” ?
    Tem imensa piada… A comunicação social está infestada de direitolas… Jornalismo, existe muito pouco… O que abunda é v#jornalixo !!!!

    • Rui Naldinho says:

      Desculpe-me mas este artigo é até bastante assertivo. Diria mesmo que é uma análise muito fria e racional sobre como foi possível ao “Chega chegar aqui”.
      É verdade que há muito meio de CS com agenda bem definida. Nunca tive dúvidas disso. Mas nem por isso o texto do artigo aqui editado, deixa de ser incisivo. Nomeadamente no seu último parágrafo, com o qual concordo em absoluto.
      A globalização acarinhada de forma acéfala pela maioria dos partidos ditos tradicionais, com especial ênfase os sociais democratas europeus, deixaram um mar de excluídos no mundo do trabalho, sem que alguém tivesse pensado que eles ainda existem. Se lhe juntarmos a isso a corrupção, o tráfico de influências, a endogamia, e uma forte pitada de populismo, estão encontrados os ingredientes para fazer do Chega um partido com uma base eleitoral, no mínimo, agressiva.
      Ouvi um dia, já lá vão mais de quarenta e cinco anos, o Dr. Sá Carneiro dizer isto:
      ” É no caudal dos descontentes e excluídos que o Partido Comunista vai buscar os seus adeptos”.
      Hoje isto serve em boa parte para o Chega.

      • POIS! says:

        Sim, Sá Carneiro disse isso. E para evitar que alguns dos excluídos não engrossassem as hostes do PCP, convidava alguns para os comícios. Já aqui relatei que assisti pessoalmente a um comício na Guarda onde metade da plateia era da comunidade cigana.

        Por isso acho muito estranha, muito estranha mesmo, a posição do Venturoso Escolhido pela Divindade para encarnar a herança de Sá Carneiro sobre a comunidade. Antigamente eram muito amigos. Parece que se zangaram

        • Rui Naldinho says:

          Há apesar de tudo uma diferença entre os excluídos desse período e os desta época.
          Nessa altura os excluídos eram pessoas cuja pobreza económica tinha sido sempre a sua condição.
          Os excluídos de hoje, são em boa parte os ressentidos de uma classe média baixa que se desmoronou por várias vias, desde o encerramento de pequenas e médias empresas sem capacidade para resistir às mudanças tecnológicas, licenciados e mestrados com empregos mal remunerados e precários, retornados e seus descendentes que ainda não esquecerem o velho império, etc, etc…

          • POIS! says:

            Perfeitamente de acordo. Apenas quis lembrar aos seguidores do Venturoso Enviado Escolhido que o passado, que ele não tem porque foi escolhido anteontem enviado agora mesmo, mas invoca, não é bem como pensam.

            Sá Carneiro, por exemplo, para a Direita é tudo. Desde ser o autor da receita das batatas com bacalhau, o inventor do kiwi ou o divulgador da 70ª posição do Kama Sutra, que possibilitou uma verdadeira explosão demográfica em Barrancos, a lista de feitos não tem fim. É aliás, semelhante á do Glorioso Infante, que descobriu o mundo todo sem ter de sair de casa.

            Aliás, o passado só interessa para os adversários dos Venturoso. Acusou Ana Gomes de ter militado no MRPP e de ter destruído “empresas e famílias”. Durão Barroso, que foi membro do Comité Central e, mais que isso, destacado ideólogo, não destruiu nada. Só escrevia coisas que outros interpretavam mal, coitadinho.

            Mas, ao mesmo tempo, gaba-se de estarem todos os dias a aderir “antigos comunistas” à Venturosa Legião. Presumo que o Enviado Escolhido venha com procuração da divindade para relevar os pecados através da adesão à Venturosa Coisa.

            Mas o Venturoso Enviado não deixa de ter alguma razão. Nos assaltos a sedes de partidos de esquerda, principalmente no Norte, havia gente do PPD, do CDS, e…do MRPP, todos em feliz confraternização. Nessa altura eram muito amigos.

            Sá Carneiro ajudou, inclusivamente, militantes maoístas a legalizar partidos de “extrema-esquerda” (AOC, PCP-ml) e o então PPD concorria em listas conjuntas com eles às comissões de trabalhadores e aos sindicatos. O MRPP, aliás, apoiou Eanes nas primeiras presidenciais, o que foi amplamente divulgado e louvado pela malta da Direita, que os apresentava como uma “extrema-esquerda boazinha”.

            Dir-se-á que ninguém já liga a essas coisas, já passou muito tempo e, que definitivamente, são histórias que não interessam. Não é bem assim.

            Tudo isto ajuda a criar um envolvimento ideológico, uma narrativa que pretende colocar os que, desde há largos anos, vêm praticando “o mal” em confronto com a Venturosa Legião “do bem” cujos chefes, por terem sido Escolhidos e Enviados agora mesmo, estão num estado de luminosa pureza tão brilhante que até encandeia.

        • abaixoapadralhada says:

          “Já aqui relatei que assisti pessoalmente a um comício na Guarda onde metade da plateia era da comunidade cigana.”

          Em 74/75 a tropa de choque que protegia o General Galvão de Melo, eram ciganos

  2. Tal & Qual says:

    Isto é tudo um pu..tedo ! (Arnaldo de Matos)

    Esta gente não sabe que o 25 de Abril 74 foi feito justamente para correr com o faxistas do chega ?
    É claro que o CDS vai desaparecer e o PSD irá ficar reduzido.
    Toda a faxaria que regressou de Espanha e do Brasil mais os legionários irão encher o Chega. Onde está o segredo ?

    • POIS! says:

      Pois não sei!

      Mas ainda noutro dia desencostei, por engano, a porta de uma tasca em Portalegre e lá por trás estavam mais de 400 legionários! E ainda encontrei três pides atrás do balcão frigorífico e uma estátua do Mussolini que, vim a descobrir porque se mexeu, era o próprio tasqueiro.

      Uma desgraça, é o que é! Não sei como escaparam durante todo este tempo!

  3. Paulo Marques says:

    Pelo menos eu, quando me refiro ao jornalismo, não me refiro ao jornalismo sério de investigação, o pouco que existe e muito mal recompensado.
    Não, o jornalixo é chamar extremistas a partidos com um discurso com ligeiras, mas mesmo muito ligeiras, críticas ao sistema, quer nacional, quer europeu, só para defender o caminho único de centrismo agressivo. O caso do Syriza, que cumpriu os acordos muito além de Passos, ser referido como extrema-esquerda é um insulto à inteligência e uma lavagem política. Ou as imparáveis críticas pela não reacção do governo ao programa de recuperação que só agora existe, ainda sem capital. Ou a insistência em criticar tudo e o seu contrário na resposta à pandemia. Ou o constante foco em se o BE e o PCP assinam ou não assinam de cruz o que o governo propõe, como se isso melhorasse a vida dos portugueses e não as propostas discutidas todos os dias na assembleia, onde há mais partidos a contribuir (e a aprovar até mais, diga-se). É falar sempre em Sócrates e nunca em Macedo, Carlos Costa, Marco António Costa, Paulo Portas e por aí em diante. Até lhes pagam.
    Não sei se é o caso do autor, mas, sim, os seus colegas entregam metade do discurso ao coisito. E, por muito que haja virgens arrependidas agora, muito editorial xenófobo, racista, falso, e de falsas equivalências continua a ser produzido e bem pago. E para isso não contribuo, o Pingo Doce, a Sonae e quejandos que paguem a sua própria propaganda, que lhes dá muito proveito. Por muito que gostasse que houvesse mais investigação como a que refere, o patrão é que manda, e com ele é com o que mantém eu não posso aguentar.

    • Paulo Marques says:

      Acho que a história da “falta de oxigénio” fala por si.