Praticar o distanciamento de nós próprios: a questão do eu

 

@dougsavage

 

Não será de todo irreflectido pensar que vivemos uma constante e abrangente crise de identidade. A procura pelo significado do eu pintou a história de aventuras, da realidade à ficção ou mesmo na intersecção de ambas. Somos, afinal, eternos contadores da nossa própria história.

A ideia de sermos história cria, desde logo, uma crise de identidade: somos a nossa história ou os contadores dela? E se a contarmos, ela deixa de ser nossa?

Coloca-se o problema do distanciamento. Será proveitoso pensar que quanto maior o distanciamento, maior a incapacidade de encontramos o eu na história. Precisamos de estar próximos de algo para podermos dissertar sobre esse algo. A proximidade e a convivência garantem-nos experiência acumulada que se transforma em conhecimento de causa. Mas esta proximidade tem, em si mesma, encerrado um paradoxo existencial do distanciamento: não será a nossa visão mais clara quanto mais nos distanciarmos do objecto em análise, neste caso, nós próprios?

Parece-me que, hoje em dia, se vive uma fuga permanente do eu na tentativa de o definir com sucesso, mas sem este. Desde logo porque precisamos de base de identificação, de estrutura, de conceitos do eu que são tantos quanto a subjectividade. Afinal, quem somos?

Poderemos dizer que somos o conjunto dos nossos pensamentos. Pensamentos que se transformam em convicções e crenças e estes, por conseguinte, dão origem a acções e, por isso, a intervenção no mundo. Fica patente uma marca que parece nossa, uma herança que perdurará nas mentes de quem connosco convive. Mas se os pensamentos são, também eles, interpretação do mundo, não criam eles próprios várias identidades exteriores do eu, naquilo que é o outro?

Ou, podemos também questionar, seremos nós os pensamentos se não sabemos de onde eles vêm? Ou, ainda, seremos nós os pensamentos se eles poderão ser um reflexo próprio do ambiente em que nos enquadramos? Viveremos, assim, presos num raciocínio circular eterno, em que somos simultaneamente criadores e criação.

Ainda assim, a ideia de criação poderá ser utilizada na busca da identidade. Pensamos num conceito de realização supra-humana em actividades artísticas, iminentemente criadoras, por oposição a uma noção de trabalho de necessidade que esvazia, em certo ponto, a humanidade. Seremos o que criamos? E, se formos, quem não cria, deixa de ser?

Esse ser é, hoje em dia, iminentemente digital e, também, história. O advento das redes sociais deu origem a uma multiplicidade de eus que, embora pudessem existir desde sempre, foram exarcebados pelo imediatismo do mundo online. Estamos constantemente a contar a história da nossa vida aos “seguidores” mas, assim como o romancista manipula a realidade, dando-lhe características literárias, também cada um de nós o faz nessa história constante nos nossos perfis. A palavra não será ao acaso, no sentido em que estamos constante num exercício de auto-definição cujos objectivos se diluem num nevoeiro de identidades.

Essa multiplicidade de eus que se criam nos vários perfis do online agudizam uma crise de identidade que não aparenta ter solução, estando presa por um fio de criações instantâneas ou em realidades melhoradas. Distanciamo-nos do objectivo de nos definirmos para encaixarmos em perfis e rótulos definidos por uma entidade sociedade que é, no final das contas, uma enorma soma de identidades não definidas.

E esse distanciamento que criamos de nós próprios, na tentativa vã de receber uma validação de existência que parece condição sine qua non do viver actual, por parte de outros seres à procura da mesma validação, cria um dilema existencial interior no processo para atingir a identificação que queremos: estaremos a brotar de nós para os outros, tentando completar-nos neles, ou estaremos constantemente a definir-nos de fora para dentro, colando retalhos de expressões vazias que se propagam no discurso público?

O dilema do distanciamento é, no fundo, o dilema dos nossos dias. Precisamos de perceber qual a escala correcta desses vários distanciamentos: para connosco, para com os outros, para com a nossa noção de identidade, para com os nossos pensamentos, para com as nossas acções. Devemos distanciar-nos de nós para nos podermos ver, como dizia Saramago, mas não o suficiente para que não nos percamos nesse processo de identificação corrompido por um mundo, mesmo ele, em crise de identidade.

Comments

  1. “Eu sou aquilo que os outros dizem que eu sou”. Deve ser esta a base de trabalho para sabermos realmente quem somos.
    É aqui que entra o distanciamento. Eu saio de mim e, do lado de fora olho para mim. E que vejo? se vir aquilo que os outros dizem que sou (honesto ou não, pontual ou não, frívolo ou não, etc.) é porque sou mesmo isso.
    Porém este método tem muitos escolhos, sem o principal a parcialidade de todo aquele que julga em causa própria…
    A ciber-identidade não existe. O que existe é a imagem de mim, travesti, expondo minhas roupagens na nuvem…

  2. sendo o principal

  3. Filipe Bastos says:

    Bom post. Que bom variar da pulhitiquice.

    Creio que foi Kundera que escreveu ‘muitas pessoas, poucas ideias’: entre milhares de milhões, vivos e mortos, qual a esperança de se ser único? Se todos somos ligeiras variações de mil outras pessoas, a reciclar ideias parecidas, onde pode residir a individualidade?

    Se não nas ideias, e se tanto de nós é imerecido e arbitrário – os nossos genes, onde e quando nascemos, como somos educados – o que é a identidade? O que é o eu? O que criamos, como diz o César? O que os outros vêem em nós, como diz o Oavlag?

    • POIS! says:

      Pois tá bem! É bom variar!

      Acho que V. Exa, faz bem em tentar responder a tão candentes questões. Por exemplo “o que é o eu?”.

      Sim, porque em relação aos outros, V. Exa. já sabe tudo.

    • POIS! says:

      Ah! Pois fiquei surpreendido por ter citado o chuleco do Kundera!

      Depois dos chulecos dos maestros, que são completamente inúteis porque a música está toda escrita (e, nos dias de hoje, até há fagotes e trombones que tocam sem chulecos a assoprar feitos parvos), e que só aparecem à frente da orquestra a armar aos tordos para vender discos, os escritores são os piores.

      Cá p’ra mim isto de escritores não devia existir. Só servem para vender livros. As palavras estão todas no dicionário, é só juntá-las. Depois publicava-se o resultado, (caso os pagantes decidissem), mas sem o nome do autor, que não acrescenta nada ao que está escrito e leva ainda a um acréscimo de gastos em tinta.

      Se a maioria decidisse que o livro não prestava, seria obviamente queimado, enterrado, ou até lançado para o espaço numa nave do Musk, segundo o que fosse destinado por peritos.

    • Filipe Bastos says:

      Pois parece-me que começa a cair em certa obsessão, POIS, e não vejo porquê: não sou eu o inimigo.

      Creio que está tão habituado à ‘moderação’ pífia cá da casa, na prática mera reciclagem do bom e velho status quo, que parece incapaz de considerar outra perspectiva.

      Pretendo mais equidade, mais igualdade, mais justiça, menos resignação, menos submissão. Seja a quem for. A vida é muito curta para isso, POIS. E não há 2ª tentativa.

      • British says:

        POIS

        “Pois parece-me que começa a cair em certa obsessão, POIS, e não vejo porquê: não sou eu o inimigo.”

        Pois, embrulha para não estares a dar corda ao rapazola fascistoide que cuida que nos convence ser de esquerda

        Pois, deixa o garotão a falar sozinho

  4. Manuel Melo says:

    A única coisa estranha é toda uma colecção de gente educada, de esquerda, que antes das presidenciais inundou as redes sociais com mensagens “anti-fascismo” e agora parece que estão todos hibernados – concretamente, perante este nojo, não se insurgem, não protestam, não metem uma moldura na sua foto de perfil, não pedem greves, nada. Afinal só é “chocante” o sintoma, não as causas. A falta que faz uma educação científica, para além da outra.

    • Paulo Marques says:

      Insurgimos, pá.Quando mais depressa acabarem as festinhas, mais depressa acabamos o distanciamento. Nada mudou.

      • Paulo Marques says:

        Nem por o Idiota ter sido Idiota. Ao menos foi uma vez, os críticos são todos os minutos.

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