C’est vraiment trop injuste…
— Calimero
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Não pretendo meter foice em seara alheia, pois há abundante literatura acerca do fenómeno de não se aceitar um resultado negativo, na perspectiva de, obviamente (o obviamente é, por definição, indiscutível), sermos os maiores e, logo, se perdemos, como somos os maiores, é claro que fomos prejudicados por algum menino mau. Eis um esclarecedor texto do Nabais.
Um recente episódio levou-me a reflectir com moderada profundidade acerca do calimerismo, quer em termos gerais, quer desportivo (futebolístico) em particular. Remetendo os aspectos teóricos — em abstracto — para outros que se têm dedicado a esta matéria, eis a minha modesta reflexão prática.
Ser calimero é como acreditar em Deus. Perante a ausência de explicações racionais sobre acontecimentos ou afectado pela aversão a explicações ou hipóteses científicas sobre determinados factos da vida, o humano vira-se para Deus e afins, procurando o conforto que não encontra no mundo real. Defronte da ausência de percepção sobre a debilidade da sua equipa (leva quatro secos em casa — em casa! — de uns flamengos meus vizinhos), em contraponto com a força do adversário (ganha em Turim, empata duas vezes (1 e 2) perante Mbappé, Messi, Neymar & C.ia e domina o jogo em causa em toda a linha), o calimero faz o quê? Vira-se para o árbitro.
O calimero até pode não estar a falar naquele preciso momento do desempenho do árbitro no jogo em apreço, mas não pode deixar de falar sobre outros desempenhos daquele árbitro. Não pode. Porquê? Porque não consegue. O árbitro, o árbitro, o árbitro. Futebol? Nada. Tenho um amigo de longa data, calimero profissional, que não distingue uma chuteira de um fora-de-jogo. E a solução para esta lacuna é falar de arbitragem. Parece o Eddie Vedder da Rechousa, aquele que já cantou no Mercedes.
Como acontece nas conversas com beatos, em que Deus é omnipresente (nas conversas…), o calimero nunca pode deixar de falar sobre o árbitro. Até pode dizer que é ateu, mas uns “ai meu Deus!”, “Deus me livre!” ou “graças a Deus!” são inevitáveis (inevitable/unavoidable; it was inevitable). No entanto, confrontado com o facto, o calimero dirá que são expressões fixas — aprendi isto em Linguística Francesa (pdf), mas o excelente Helder Guégués explica-vos em português: «por expressão fixa, entende-se uma expressão constituída por mais do que uma palavra, cujo significado não pode ser inferido a partir do significado das partes que o constituem».
Efectivamente, para o calimero, a falta de menção à arbitragem é uma heresia. Sei do que falo, porque já acreditei em Deus. E até fui agnóstico. Mas, graças a Deus, sou ateu: jogai mas é à bola.
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Actualização (17/11/2022): Aditamento do inevitable do DLR dos VH.
E, no entanto, acerto sempre quando decido aproveitar o tempo para outra coisa invés de certos padres. Ele há coisas…