Na praia O Rostro em Finisterra, na Costa da Morte (referência geográfica que já é todo um poema romântico), este inverno trouxe à areia o navio Silva Gouveia, 87 anos depois de ali se naufragar. Era propriedade da Sociedade Geral de Comércio, Indústria e Transportes de Lisboa, tinha nascido em Middlesbrough 21 anos antes, tripulação e carga salvaram-se, um esqueleto acordado por uma tempestade, com seus visitantes aos domingos, o que resta de um cargueiro de 1200 toneladas onde os marinheiros não ganharam para o susto e a seguradora teve de contratar carros de bois para puxarem a 10 pesetas o açúcar, conta José López Redonda, historiador local.
Os naufrágios já proporcionaram bons negócios, nada que me arrepie, também nas funerárias se ganha o pão com os mortos, e ali eles acumulam-se, na mesma praia em 1987 se incendiou o Cáson, carregado de químicos, por aqueles lados se deu a catástrofe do Prestige. Chamavam raqueros aos que, havendo naufrágio, se metiam ao saque. Vem a palavra do inglês wrecker castelhanizado, a fama seria longa, como a ironia de os ingleses esquecerem a sua história de Drakes e outros corsários com que nos fustigaram, ibéricos, e teve um momento alto no naufrágio do Great Liverpool.
Navio de luxo, viajava com 140 tripulantes e passageiros vindo da Índia então jóia da coroa, quando a 24 de Março de 1846 toca nuns baixios assassinos e governado por comandante incompetente acaba por dar à costa. Vinda a população em socorro, o capitão Macleod não hesitou em abrir trincheira e responder a tiro, selvagens espanhóis (ignorante, eram galegos) só podiam vir ao saque, e aí solidificou a lenda da Costa da Morte e seus raqueros. Macleod acabou por se suicidar, a fama talvez se tenha desvanecido, ou os séculos de naufrágios ainda habitam dentro dos que foram agora à praia do Rostro a ver o Silva Gouveia levantado pelo mar.
Trouxe-nos este inverno carcaças de navios, e como gostámos nós, mórbidos, de contemplar o passado em carcaças, na outra ponta da Europa soltaram-se outras carcaças, vivas e por isso mais mórbidas, a Alemanha dando a mão a nazis, a Rússia brincando ao seu império, e levamos isto com a naturalidade de quem vai por uma estrada sinuosa e estreita ver o mar na praia do Rostro, uns pela maresia, outros no fingir de felicidade tão típico de quem caminha para o abismo, mesmo aquele casal há muito desfeito que passeia o crio sabendo que só por ele e pela crise continuam juntos num fingimento de lar, enquanto observam destroços alheios. Por vezes num 3 en 1 ( Cason+ Prestige+Silva Gouveia), como explica o autor desta imagem que lhe roubei no Facebook:
Un cacho de ferro do Casón, un pegote de chapapote do Prestige e o fondo os restos do Silva Gouveia
nao deixa de ser uma imagem nolstalgica