Memórias com quarenta anos

Era madrugada alta quando acordei, estremunhada, com o telefonema de António Valdemar que, à janela da sua casa na Avenida da Liberdade, estava a ver passar os primeiros blindados. Que ia já ter com ele, respondi. Queria lá saber de recomendações dos militares para não sair: nunca tinha visto uma revolução,nunca tinha votado, nunca coisa nenhuma por causa da ditadura, não faltava mais nada do que não ver como era. Mas antes de sair, telefonei a todos os meus amigos que tinham filhos pequenos: que não deixassem as crianças ir para a escola de manhã cedo e ligassem o rádio. E porta fora. Estava uma madrugada fresca, macia, perfumada, dava gosto subir até ao largo e descer ao saltos as escadas da Praça da Alegria. Eu morava numa rua de fronteira entre o Bairro Alto e o Príncipe Real, a dois passos do SNOB, o bar que era poiso certo de jornalistas, e a casa do Mestre Agostinho da Silva, que pelas sete da manhã era certo a dar milho aos pombos no largo, pretexto meigo para meter conversa com os trabalhadores que partiam para a labuta diária e, sem saberem porquê, adoravam aquele velhinho que falava tão claro quando lhes contava histórias que os faziam pensar. Não era longe, também, do restaurante onde jantava todos os dias, o Rina, que era o nome da patroa, na Travessa dos Fiéis de Deus. Sempre os mesmos, amesendados ali por anos a fio: Edite Soeiro, Acácio Barradas, José de Lemos, Urbano Carrasco, Artur Agostinho, Joaquim Benite, Fialho Gouveia, António Soares, o pintor, malta do teatro e dos fados, com Maria da Fé à cabeça, enfim receita garantida para estarmos ali sem cerimónia, como em nossa casa, até às tantas. Às vezes a Rina chegava-se a nós, mansa, a pedir que nos fossemos embora para outro lugar porque tinha de se levantar muito cedo, e nós obedecíamos. Como naquela noite em que, absolutamente em brasa, todos discutimos a Lei de Imprensa que os liberais, liderados por Francisco Sá Carneiro e Francisco Balsemão, levaram à Assembleia Nacional, na esperança de travarem a censura. José Carlos Ary dos Santos chegou, sentou-se junto a nós e logo entrou na discussão, que prometia entrar pela noite dentro. Lá veio a Rina, com o seu jeitinho maternal, e emigrámos para uma leitaria do bairro que estava aberta toda a noite. E ali voltámos à discussão. A certa altura, o Ary dos Santos levantou-se e foi em direcção aos lavabos, mas sempre a virar o corpanzil para trás, sempre a berrar as suas razões naquela voz (inesquecível). Foi então que o tasqueiro, aflito, lhe gritou: “Oh sor Ary, sor Ary, por ai não, por aí é das senhoras!”. O poeta estacou, pôs a mão à ilharga e perguntou com a cara mais séria do mundo: “E eu sou alguma galdéria?”. Ficou submersa por um mar de gargalhadas a magna discussão.

Éramos uns doidões, revoltados com o regime. Nunca me deu jeito estar enfeudada a um só grupo, sempre pertenci a vários ao mesmo tempo. Sou de Angola, fiz os estudos secundários no Colégio de Tomar, célebre em todo o país por ser repressivo, mas donde saiu gente tão gira como o Salgueiro Maia e o Domingos Arouca, figura importante (e sacrificada) na história da independência de Moçambique. Fui a sócia número 450 da Casa dos Estudantes do Império e amadureci politicamente na tertúlia de Alda Lara, a poetisa de Angola. Entrei na greve nacional de estudantes em 1962. Lembro com nitidez aquele dia em que a polícia de choque levou os canhões de água e o Filipe, de Nova Lisboa, descarado e com piada, tirou a camisa e puxou dum sabonete, lavando-se, imperturbável, diante dum tal capitão Maltez que, sem ofensa para os animais, era uma completa besta. O mesmo Filipe que, éramos milhares de estudantes no largo da Cidade Universitária quando ouvimos Marcelo Caetano dizer que se demitia de reitor, berrou como um possesso: “Malta, este tipo acabou de ganhar o lugar de primeiro ministro”. Estive lado a lado com estudantes de todas as cores políticas, de todas as raças, irmanados na revolta contra o regime que nos sufocava. Tive de renunciar ao curso algum tempo depois e enveredei pelo jornalismo. Fiz parte de mais grupos. Era para mim muito claro que queria a queda do regime e a independência das colónias, o fim daquela guerra estúpida e inútil. Ainda por cima viajava e podia sentir, lá fora, a vergonha e o desconforto da nossa servidão. Mas era para mim também muito claro que, por amor da liberdade, eu nunca poderia ser comunista. Nunca o escondi dos meus amigos comunistas.

Naquela madrugada, tudo isto me fervia no sangue de mistura com a esperança. Eu sabia, dum saber que não se explica, que o regime havia de cair. Só não sabia quando nem como. Que estivesse a tropa na rua para a traulitada parecia-me um bom sinal. Andei todo o dia neste entusiasmo. Feliz por ver que largos milhares de pessoas também tinham desobedecido e inundavam as ruas, cheios de uma alegria pura. Unidos no raiar duma nova era. Mas só respirei fundo quando, no Largo do Carmo, com o Tareco Sousa Tavares pendurado numa árvore, vi sair a chaimite que levava a primeira fornada para o que, ingenuamente, eu pensei ser o julgamento de todos os responsáveis. Era já noite quando cheguei a casa. À minha porta estava o Luiz Fontoura com a mulher, a corajosa Anabela, e os filhotes pequenos, a perguntar-me se eu sabia para que lado pendia o movimento. Depois de 48 anos de extrema direita, só podia pender para a esquerda, adiantei eu, admiradíssima. Depois chegaram outros amigos, comemos, bebemos, conversámos até chegar a primeira declaração ao país da Junta de Salvação Nacional. Dali em diante, por largos meses, a minha casa parecia um centro de comícios, cabiam lá todas as cores. No dia seguinte, um telefonema de Luanda, do João Fernandes, director da revista NOTÍCIA, onde eu publicava semanalmente uma crónica, pedia-me que fosse a Caxias fazer a reportagem dos pides presos. Fui ao Palácio Foz buscar as credenciais, que recebi das mãos do Manuel Serra, então ao serviço de Raúl Rego. O Manuel Serra, conhecido nas hostes do reviralho por Manecas das Intentas, estava o máximo, enfiado num amplo blusão de lã ornado de milhentos emblemas e crachats. Horas depois chegava a Lisboa o fotógrafo Eduardo Baião e rodámos para Caxias, onde pudemos ver o Seixas, o Mortágua, o Silva Pais e outros cães de guarda da pide. Ficou podre, pior que estragado, a olhar para mim, o inspector Rodrigues, que me interrogou umas horas na Rua António Maria Cardoso quando, a exemplo de largos milhares de portugueses, também uma denúncia ali me levou a perguntas. Hoje, sou eu que fico podre, pior que estragada, ao verificar que o homem é igualzinho, fisicamente, ao Passos Coelho: o mesmo olhar cintilante de inteligência do pargo cozido, os mesmos lábios finos de maldade, o mesmo jeito provocador e hipócrita.

Quando o 25 de Abril chegou, eu dirigia um gabinete de imprensa e relações públicas num sindicato. Dali a pouco tempo, José Luís Judas, militante do PCP, entrou-me pelo gabinete dentro, com um riso escarninho, a entregar-me a carta de saneamento “por motivos ideológicos”. Era preciso entregar o meu lugar a uma militante do PCP, acabada de sair da prisão. O Judas passou-se depois para o PS e continuou a fazer tristes figuras. Sem trabalho, andei um ano a ver tudo com muita atenção. Votei pela primeira vez, em liberdade, como todo o povo, e à noite, pela tv, vi e ouvi um grupo de comunistas declarar que o povo tinha votado mal, ao dar a maioria ao PS, que o povo era ignorante e por ai fora. Triunfalistas, vaidosos, convencidos que só eles eram os donos da revolução, exibindo os anos de cadeia como os novos ricos exibem os carros e as mansões, deixaram claro, perante todos nós, que não aceitavam a democracia e, portanto, estavam dispostos a tudo. Eu, que sempre acreditei na democracia, achei imbecil sair duma ditadura de 48 anos para cair noutra que, na União Soviética, já ia em 60 e tal anos. Comprei um jornal em Tomar e parti loiça quanta pude. Mais tarde, porque a justiça em Portugal é um artigo de luxo, pois o processo que tinha a correr contra a entidade que me saneou rolou 26 anos pela 1ª Instância, Relação, Supremo e Tribunal Constitucional, graças aos sucessivos recursos interpostos na esperança de o processo prescrever ou eu morrer entretanto, acabei por me expatriar. Vivo no Canadá, onde o inverno é intragável, mas onde a democracia se pratica com dignidade e o respeito, é um facto.

Tinha 38 anos quando aconteceu o 25 de Abril. Como diria a Hermínia Silva, “sou intriga”. Tenho a certeza que essa coisa que está agora no poder vai cair, não sei quando nem como, mas vai cair. Porque há coisas que não se fazem impunemente, são as chamadas coisas que bradam aos céus. Uma delas é roubar o pão a quem vive do seu trabalho. Outra é pôr todo um povo na miséria para agradar aos agiotas ricos do estrangeiro. Outra ainda é reduzir salários e direitos para encher os bolsos aos ricos. Também o são roubar o direito à Saúde, à Habitação, à Educação, à opinião e ao direito de expressá-la. Tudo isto se pagará com língua de palmo. É uma questão de tempo. Espero que pouco tempo e que, na hora da verdade, não repitam os erros de 1974. Este estado de coisas tem responsáveis, é preciso julgá-los de forma exemplar para que a memória não esqueça e Portugal se sinta de novo limpo. Basta o povo querer.

Não quero mal a ninguém, em termos pessoais. Mas em termos de Pátria, estou zangada com vários traidores. Apesar de todos os pesares, o 25 de Abril valeu a pena. Se for preciso repeti-lo, que se repita.

Comments

  1. José Peralta says:

    fleitão

    Bela evocação, que subscrevo e aplaudo a mãos ambas, da primeira à última linha !

  2. D.O. says:

    F Leitão, vivo em Tomar e lembro-me perfeitamente da polémica que causavam os seus artigos. Continue a brindar-nos com a sua escrita lucida de que não perco uma palavra aqui neste blog! Um abraço.

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