Mercosul, o meganegócio

Imagem: Fundação Heinrich Böll

É banal e fatal: quando chega à parte do negócio, não há valores elevados que resistam.

Bolsonaro atenta declarada e sabidamente contra os direitos humanos e o ambiente? Mas que importam essas minudências, se em cima da mesa das negociações está o Mercosul (acordo de livre comércio da UE com a Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) com oportunidades bem rechonchudas, entre outros, para a indústria automóvel, a manufatura e a indústria química? Nadinha, principalmente para António Costa, Angela Merkel, Pedro Sánchez, o holandês Mark Rutte, o sueco Stefan Löfven, o tcheco Andrej Babis e o letão Krisjanis Karins, que lançaram um veemente apelo à Comissão Europeia para a conclusão do Mercosul, a que chamam um “histórico” acordo comercial.

Por parte da sociedade civil, mais de 340 organizações exigiram em carta aberta que a União Europeia suspenda imediatamente as negociações do Mercosul, devido à deterioração dos direitos humanos e das condições ambientais no Brasil. A carta foi dirigida ao presidente da comissão europeia por ocasião da reunião do Conselho Europeu, que decorreu entre quinta-feira e ontem, em Bruxelas.

Assinar um acordo comercial com o atual governo do Brasil vai contra todos os direitos humanos e princípios ambientais que a União Europeia defende – este é um momento crucial para a liderança europeia demonstrar que mantém os seus princípios e não negociará acordos comerciais que contrariem o Acordo Climático de Paris e os direitos humanos”, afirmou Shefali Sharma, directora do Instituto para a Agricultura e Políticas Comerciais da Europa.

Desde que Jair Bolsonaro se tornou presidente do Brasil a 1 de Janeiro de 2019, o seu governo desmantelou proteções ambientais, tolerou incursões de invasores armados em terras Indígenas e compactuou com um aumento dramático das taxas da desflorestação na Amazónia, prejudicando anos de progresso.

“Observamos um agravamento dos direitos humanos e da situação ambiental no Brasil, incluindo ataques a pessoas que defendem os seus territórios ou recursos naturais e mortes de líderes comunitários, camponeses e ativistas.

A sociedade civil europeia exorta a UE a usar a sua influência comercial para acabar com as violações de direitos humanos e a desflorestação no Brasil e apoiar a sociedade civil brasileira e os defensores do meio ambiente”, disse Adrian Bebb, especialista em comércio, da organização Friends of the Earth Europe.

Para além das questões ligadas à dramática situação no Brasil, este é mais um passo decisivo no desastroso caminho de uma globalização ceguinha.

A produção de carne bovina em larga escala é a maior causa da desflorestação global e as florestas no Brasil foram destruídas em grande escala para abrir caminho à produção intensiva de gado. Em 2017, 42 por cento das importações de carne bovina da UE vieram de transnacionais brasileiras que foram fortemente subsidiadas pelo governo brasileiro. A maior processadora de carne do mundo, a JBS, emitiu mais gases com efeito estufa em 2016 do que a Holanda. Um estudo de 2013 da Comissão Europeia também apurou que a expansão da soja foi responsável por quase metade da desflorestação envolvida nos produtos importados pela UE. O Brasil é o maior produtor de soja da América do Sul e, até recentemente, a UE era o seu maior mercado.

Para o sector agrícola europeu, este é mais um bárbaro ataque. As normas ambientais, de higiene e de protecção das culturas são muito menos rigorosas no Brasil do que na Europa. Isso representa para o Brasil uma clara vantagem competitiva. A agricultura europeia, já actualmente sob enorme pressão, terá de lutar mais ainda pela sua sobrevivência, confrontada com as importações de carne bovina barata, açúcar, aves, etanol, arroz e sumo de laranja dos países do Mercosul.

E como explica a UE aos consumidores europeus a importação de mais produtos agrícolas do Brasil, apesar de o governo presidido por Bolsonaro ter autorizado, alguns meses atrás, mais de 150 novos pesticidas, enquanto a Comissão Europeia avançou com uma estratégia para os seus próprios produtores que tem exactamente o efeito oposto???

Os defensores do acordo esperam concluir as negociações antes das eleições presidenciais argentinas e da renovação da Comissão Europeia, ambas a acontecer em Novembro de 2019.

Conforme declarou Perrine Fournier, activista da ONG Fern, “As recentes eleições europeias provaram que os cidadãos apoiam uma agenda mais verde. A administração Juncker não tem a legitimidade democrática para finalizar um acordo comercial que aumentará a desflorestação e que terá, portanto, um efeito desastroso sobre as pessoas e o clima”.

Mas, na sua infinita hipocrisia, Merkel, Costa e co. alegam que “A UE não pode desistir perante argumentos populistas e proteccionistas relativos à política comercial”.

Assim se reviram argumentos e distorcem razões, para servir os superiores interesses do meganegócio.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    A UE não pode desistir perante argumentos populistas e proteccionistas relativos à política comercial

    Políticas pró-cidadãos (correctas ou patéticas, ainda ter intenção é que conta) que fiquem para a extrema-direita, depois admirem-se.

  2. Julio Rolo Santos says:

    As pessoas têm as suas preferências políticas e lutam por elas, compreende-se, mas, o que já não se compreende, é a sua defesa acérrima de corruptos, se forem dos seus, e a condenação daqueles que não são dos seus. A governação de Bolsonaro não tem correspondido ao “monstro” que se quer fazer crer, pelo menos não há evidências disso, pelo que lhe continuarei a dar-lhe o benefício da dúvida.Tiranos há-os em todos os regimes.

    • Ana Moreno says:

      Olá Julio, no que concerne ao assunto do post, as evidências são factuais.

      • Julio Rolo Santos says:

        Ana Morena, é capaz de descrever, pelo menos uma ou mais evidências, para eu ficar a conhece-las

        • Ana Moreno says:

          Olá Julio, estão no post e nos links de referência. Estamos a falar de normas ambientais e direitos humanos.

  3. Buiça says:

    Não será um pouco lírico decidir com quem fazemos comércio externo conforme achemos que respeitam os direitos humanos, dos animais ou das plantas…?
    No limite os Brasileiros queimam um pouco da sua floresta para “plantarem” gado que é mais lucrativo; os portugueses queimam um bocado proporcionalmente bem maior da sua floresta, com impecável regularidade, só para terem notícias enquanto os derbis futebolisticos ou politiqueiros vão a banhos.
    O que tem isso a ver com querermos, na Europa, vender muito mais coisas para o mercosul sem tarifas? E onde no mundo há agricultura mais subsidiada do que na europa da PAC…?
    Convenhamos, as lideranças fracas ou fragilizadas no mercosul fazem do momento actual uma excelente oportunidade para o negócio nos sair favorável. Sem lirismos.

    • Ana Moreno says:

      Concluindo: os direitos humanos e a preservação do planeta são um lirismo que só é chamado à conversa conforme dá jeito e não embaraça o negócio. Assim sendo, Buiça, está na mesma linha do ministro dos negócios estrangeiros, que costuma chamar “ingenuidade” a esse tipo de exigências. É essa a atitude subjacente à destruição do planeta e à selvajaria.

    • Paulo Marques says:

      “Um pouco” já foi ultrapassado antes de Lula…

  4. Ana Moreno, sempre atenta e interventiva, bem haja !

    “…A produção de carne bovina em larga escala é a maior causa da desflorestação global e as florestas no Brasil foram destruídas em grande escala para abrir caminho à produção intensiva de gado.”..

    “…A agricultura europeia, já actualmente sob enorme pressão, terá de lutar mais ainda pela sua sobrevivência, confrontada com as importações de carne bovina barata, açúcar, aves, etanol, arroz e sumo de laranja dos países do Mercosul….”

    Até quando viveremos ou aguentaremos viver sob esta
    assustadora pressão revoltante em que os Merkel, Costas e & compª hipocritamente e ao serviço dos interesses dos meganegócios nos tentam asfixiar as nossas razões válidas de luta global e corajosa de protecção ambiental e sustentabilidade, distorcendo-as ao ponto de afirmarem, em tom de esclarecidos e politicamente correctos, que esta contestação se baseia em ” argumentos populistas e proteccionistas relativos à política comercial” a que a UE não deve ceder ?

    O nosso futuro e dos vindouros estar entregue e desastrosamente a ser decido por forças e nas mãos de políticos e deputados europeus em nosso nome ?
    Resistir, resistir, até que o fim aconteça ?
    ….tarde demais será.

    • Ana Moreno says:

      Obrigada Isabela, pelo seu incansável acompanhamento desta complexa realidade em que nos encontramos. É tão raro o entendimento de que todos temos a nossa quota-parte de responsabilidade, dentro das nossas (pequenas) possibilidades…
      Um grande abraço solidário!

    • Paulo Marques says:

      É pura ignorância de quem não percebeu o que se passou no Zimbabwe e na Venezuela, entre muitos outros casos – havendo uma mudança de câmbios desfavorável, lá se vai a zona económica de inflação nula.

  5. whale project says:

    Mais de 500 pessoas abatidas pela polícia nos primeiros cinco anos só no Rio de Janeiro, snipers a abater a partir de helicópteros pessoas “que podem estar portando armas”, militares que disparam mais de 50 tiros contra o carro de uma família e não lhes acontece nada, encapuçados que entram em bares e matam desgraçados pelo “pecado” de estarem a beber um copo, não chega ò Julinho? É preciso que sejam mortos 10 milhões de pessoas para o homem ser considerado o monstro que é? Lá chegará se não tivermos tomates para lhe fazermos o que se está a fazer a países como a Venezuela ou o Irão.
    E snipers a abater gente nas ruas de Teerão? O que é que dizias, ò Julinho?.

  6. Julio Rolo Santos says:

    E quantos inocentes já foram mortos nas fabelas às mãos dos traficantes e seus comparsas? Para impor a ordem naquela zona, como se deve proceder com aqueles criminosos? Considerando-os coitadinhos e passando-lhes a mão pelo lombo? Não sejamos ingénuos e tratemos os assuntos com a maior transparência a que os casos obrigam.

Trackbacks

  1. […] “cláusula ambiental” não passa pois de areia para os olhos. A verdade é que este é mais um acordo que segue à risca o modelo de desenvolvimento destruidor que nos trouxe até aqui e que se encontra em total contradição com medidas que pretendem tornar a Europa mais […]

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