“Neste país é só artistas!”

 

@Imagem: Bryant Arnold

 

Oh, quantas vezes ouvimos o “artista” para nomear alguém pouco sério ou habilidoso para fugir aqui ou ali às responsabilidades. Concepções que criam uma ideia, no imaginário comum, do que é o artista verdadeiro, aquele que decide, muitas vezes contra o mundo, dedicar a vida à arte.

É ver miúdos com sonhos de música, de dança, de literatura, de teatro, enfim, de tanta arte ser-lhes dito que podem fazer isso, sim, mas como “hobbie”. Podem fazer isso, sim, mas depois de assegurarem a sua carreira dentro da “shortlist” de carreiras tidas por dignas e, claro, economicamente viáveis.

Porque, afinal, o problema será sempre o dinheiro que teima em ser resolvido. É ele que molda as nossas ideias e concepções. É ele que faz com que a arte não seja considerada trabalho mas ocupação de tempos livres. Se alguém se dirige à sua fábrica, à sua loja, ao seu escritório, vai trabalhar, por muito que passe 8h por dia com a cabeça na lua. Temos a percepção de que está a trabalhar e, afinal, a percepção é que interessa, não é?; pelo contrário, se alguém está sentado a escrever, a pintar um quadro, a esculpir uma peça, está a passar o tempo. Ou porque o ganho financeiro não é imediato (nem sequer garantido!), ou porque simplesmente “ninguém vive da arte”.

Poucos viverão, de facto. A maioria de nós tem de se sustentar de outras formas se quer continuar a perseguir algo que nos realiza como nada mais consegue. Mas continuamos. E, além do sonho de sermos bem sucedidos (e reconhecidos!) pela paixão e coragem que vertemos na nossa arte, temos também o sonho muito claro de que a percepção errada que se tem do mundo da arte mude. Temos o sonho muito claro de que quando dissermos aos nossos pais e amigos que vamos estudar teatro, pintura ou cinema, que não nos perguntem de imediato “e vais viver do quê?”; Temos o sonho muito claro de podermos chegar a um ponto do mundo em que a compensação que retiramos daquilo que fazemos para nós próprios esteja acima de qualquer compensação financeira.

E a verdade é que cada um de nós tem o seu contributo a dar na mudança de paradigma. Os livros que lemos, as séries e filmes que vemos, não têm origem espontânea. São fruto de meses e anos de trabalho de muita gente que abdica de horas de sono (e tempo de vida) para criar. O processo de criação artística é violento, porque obriga a uma análise do “quem sou eu” que poucas pessoas estão preparadas para fazer. Sim, no mundo actual em que vivemos de reflexos e pós-verdades, a criação artística torna-se uma das últimas genuinidades que temos o prazer de contemplar.

Uma música não se compõe em 3 minutos, embora demore 3 minutos a ouvir. Um livro não se escreve numa semana, embora se possa ler numa semana. Um quadro não se pinta em segundos, embora seja olhado por segundos (olhado mas não observado). Um filme não demora duas horas a criar, embora demore duas horas a ver. A criação artística é um processo longo, muitas vezes doloroso, com o objectivo de partilhar uma visão do mundo e, em último caso, de provocar uma reacção. Acima de tudo, de fazer reflectir.

Se a arte faz reflectir, reflictamos sobre a arte. Se a arte salva, salvemos a arte.

Comments

  1. JgMenos says:

    “e vais viver do quê?”
    Eis uma pergunta pertinente e muito honesta.

    Aquela máxima de «a cada um segundo a sua necessidade…» , logo interpretada como dever do Estado, foi feita para arrebanhar (promover a formação do rebanho).

    Ninguém está impedido de prosseguir as suas ambições, mas ninguém está dispensado de prover ao seu sustento.

    • POIS! says:

      Pois é!

      E temos o notável exemplo de V. Exa: sempre ambicionou aquela esquina e nunca mais dali largou, não se dispensando de prover ao seu sustento. Apesar de não beneficiar de subsídios, lay-offs e coisas assim.

    • José Peralta says:

      Ó “mentes”

      A tua “sensibilidade” social de “a cada um, segundo a sua necessidade”, desde que tenhas tu, a pança cheia, a arrotar postas de pescada., achas que tens o direito de “decidires” qual é a “necessidade” de sustento dos outros…

      …Não me admira, por isso, que venhas para aqui soltar os teus “méééés”, de ovelha ronhosa,bem posta na vida…

      O Estado, desde que te proporcione o bem-estar do rebanho em que soltas os teus balidos, não tem MAIS nenhum dever para com todos os cidadãos…

      É o costumado “egoísmo” da pança cheia e umbigo inchado ! Toma cuidado, não vás ser como a tal rã e…rebentes !

  2. Filipe Bastos says:

    Por um lado, precisamos de artistas. Por outro, questionar “e vais viver do quê?”, como o JgMenos, não é forçosamente tacanho.

    Quantos preferiam ser pedreiro, lixeiro ou agricultor do que artista? Quantos preferiam passar a vida entre papéis, emails, transportes, filas, reuniões, chefes e clientes?

    Um artista pode fazer o que gosta quando gosta, algo raríssimo neste mundo, e pode aceder a fama e fortuna. A vida e obra de 99.9% das pessoas não será lembrada. A do artista poderá sê-lo.

    Num mundo mais justo todos poderiam dedicar-se ao que gostam. No que temos estamos muito longe disso. E os artistas mais bem sucedidos, actores, músicos, pintores, entertainers, são obscena e desproporcionalmente remunerados.

    • Paulo Marques says:

      A menos que chegue ao topo do topo, olhe que não são; a quantidade de intermediários a chular enormes percentagens muito acima do trabalho que prestam é grande.

    • POIS! says:

      Pois é!

      E um exemplo disso é o chuleco do Beethoven que resolveu fazer peças para orquestras de 40 gajos e mais, ainda por cima a tocarem todos ao mesmo tempo, em vez de fazer sonatas para reco-reco, que também é um instrumento muito digno mas que, por ser barato, é “chutado” para a ralé.

      Depois a malta habituou-se e é violineiros e tocadores de corno por todo o lado! E a gente que os sustente! Toquem enxada e cantem, inúteis!