O Império do Mal ou a falta de noção

No meio de toda esta tragédia que está a acontecer aos ucranianos ressurgiu uma discussão nas redes sociais e no comentário televisivo sobre a Europa, os Estados Unidos e o mundo ocidental em geral. Uma discussão extremada e onde os diferentes beligerantes vão usando artilharia diversa. Nalguns casos já recuaram séculos de história.

Contudo, existe uma realidade. Uma espécie de elefante na sala que complica um pouco a discussão. Será o ocidente aquela coisa estranha aparentada de império do mal que alguns bradam? Pode ser. Só existe um problema. Incómodo para esta narrativa. Vamos aos factos presentes e passados:

Ontem cerca de 2000 migrantes entraram a salto na Europa pedindo asilo a Espanha. Ao longo dos últimos anos são centenas de milhar de habitantes do continente africano a fugir para a Europa. E centenas de milhar da Ásia e de outros pontos do planeta. Ao mesmo tempo, nessa espécie de paraíso na terra que é a América Latina, central e do sul para muitos daqueles que apelidam o ocidente de ser esse tal império do mal, são às centenas de milhar a fugir para os Estados Unidos e o Canadá. Estranho, não?

Depois temos outro caso verdadeiramente estranho: não se vê nenhum país a pedir para aderir à Federação Russa mas são inúmeros, nesta geografia onde vivemos, a pedir para aderir à União Europeia e até à Nato. E, podendo, fogem a sete pés para dentro das fronteiras da UE. Que coisa mais estranha, não?

Mas vamos agora analisar a esmagadora maioria daqueles que tanto ódio destilam sobre o mundo ocidental vivendo comodamente e em liberdade nele. É rapaziada que ou escreve num Mac ou num iPhone ou num Samsung e quando não o faz, procura ganhar uns cobres para o fazer (mesmo que neste ponto os chineses estejam a dar cartas, eu por exemplo estou a escrever num Xiaomi e o Xi deve saber a minha vidinha toda, ele e o Zucker). Destilam ódio ao ocidente onde vivem enquanto comem um hambúrguer num qualquer franchising ocidental. Ou cozinham nos seus microondas umas coisas vegan e sem glúten acompanhado de um leite de soja. E depois, falando de coisas mais sérias, ignoram (ou fazem de conta) a forma como as mulheres são tratadas nesses paradisíacos países ou o tratamento dado às comunidades LGBT ou à malta que bebe uns finos ou fuma umas “brocas”.

É tudo muito bonito mas cantado. É tudo muito estilo discurso “miss universo” mas experimentarem ir viver para esses países, “tá quieto”…

Significa tudo isto que não existe, igualmente, muita hipocrisia do outro lado? Existe, então não. Ainda ontem não andavam de beijos na boca a vários dos oligarcas russos? Andavam. Então não há guerras na Síria, na Palestina, no Iémen e por aí fora? Há. E a China? É verdade. Mas eu, cá está, prefiro viver aqui e lutar para que os nossos líderes ocidentais sejam melhores e mais capazes, com o direito que tenho de votar, com a liberdade que tenho de, por exemplo, escrever isto. Com a liberdade conquistada pelas nossas mulheres e pelas nossas comunidades LGBT. E não troco. É a velha rábula dos nossos filhos da puta. Estes, por acaso, não me matam por escrever isto. Como não matam os meus amigos gay por o serem nem condenam a prisão perpétua qualquer pessoa que não siga o seu modo de vida. Prefiro, mesmo tendo que levar com alguns hipócritas e outros tantos corruptos.

Comments

  1. JgMenos says:

    ‘Tá queto’
    Tudo quer é mamar mais do prato ocidental, e se possível sem dar o corpo ao manifesto … à força de treta é mais cómodo.


  2. … tal como não faz qualquer sentido a posição assumida pelo Partido Comunista Português nesta quetão, como afloro em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2022/03/a-ucrania-e-o-inefavel-pcp.html, que convido a visitar e comentar.

  3. Paulo Marques says:

    É possível odiar mais do que uma coisa. Até é possível perceber até que ponto são duas (ou mais) faces da mesma moeda, e ver que não são “os nossos valores” que permitem a liberdade de expressão, quando os protestos se tornam proibidos no RU, assumir a identidade, quando se proíbe ensinar a história como ela foi ou retirar crianças trans aos pais, e por aí fora. Ou que esses tais valores são usados como desculpa para a exploração e violência de aliados de conveniência, prontos a serem descartados por outros quando a ideologia evolui, à custa de quem, que remédio, de facto emigra para os paraísos onde pode ser cidadão de terceira, constantemente vigiado e com direitos limitados. Ou até que os distúrbios alimentares são um problema a aumentar graças à tal não interferência nos valores.
    E perceber que, também por isso, há quem não os queira, muito menos à força, das armas ou da economia, sabendo que é à custa de Pinochets a libertar o país até ficar agrilhoado ao extractivismo.
    Se é melhor, é, claro. Mas também vai devoluindo desde que a história acabou e à medida que qualquer alteração menor se tornou impossível; as tais 4 liberdades suprassumas são cada vez menos universais, até a imprensa se censura a partir do alto da pirâmide sem qualquer mandato democrático. E vai definitivamente devoluindo economicamente, com consequências imprevisíveis, quando confrontado com as suas contradições, fugindo para a frente e inventando culpados.
    É possível ser crítico sem se dizer que o outro é melhor; a humanidade já tens uns milénios de experiência no assunto, acho eu.

    • Paulo Marques says:

      Aliás, já estamos outra vez a castigar quem não tem culpa nenhuma; depois de limpar o dinheirinho dos amigos do regime que andou a roubar ao povo, agora continuam a ser quem sofre nas várias sanções, até criadores de arte e desportistas que não têm nada a ver com o assunto passaram as ser os alvos, fora o assédio a quem já tinha imigrado e integrado.
      Os valores são, de facto, bonitos. Mas não são reais, são conveniência.

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  1. […] meu camarada aventador, Fernando Moreira de Sá, escreveu aqui um texto interessante, sobre o qual me apraz deixar aqui sete notas, tipo sete pecados mortais. Aqui vão […]