O Império (do mal?) contra-ataca

O meu camarada aventador, Fernando Moreira de Sá, escreveu aqui um texto interessante, sobre o qual me apraz deixar aqui sete notas, tipo sete pecados mortais. Aqui vão eles:

1) A discussão extremada que o Fernando refere é real, dura há anos, para não dizer décadas, e continuará bem viva, enquanto a dualidade de critérios imperar. Arrisco dizer para sempre. No caso presente, é interessante notar que há quem fique muito ofendido quando outro alguém ousa trazer para a discussão sobre a presente invasão os antecedentes que dela são indissociáveis, como se isso implicasse, necessariamente, legitimar a invasão ou defender Putin. Até porque, de uma maneira geral, as pessoas que recusam ouvir falar desses antecedentes, alguns dos quais bem presentes, são as mesmas que estão constantemente a falar – e bem – na barbárie estalinista, tendo Estaline morrido há mais de 60 anos.


2) Sobre a ideia do Império do Mal, importa referir que o Ocidente não é um império uno e indivisível. Os criminosos ocidentais estão bem identificados e não é a pertença à NATO que os define. É, por exemplo, invadir um país sem consultar todos os seus parceiros, e com base num pressuposto fabricado, como os EUA fizeram com a segunda invasão do Iraque. É, também, orquestrar um golpe de Estado contra um governo democraticamente eleito, pelo motivo de esse governo não ser favorável aos interesses de Washington. É, igualmente, nunca ter respeitado o plano de partilha da Palestina, aprovado por uma larga maioria dos membros de então da ONU, e continuar a construir colonatos ilegais na Cisjordânia, impondo uma verdadeira ditadura ao povo palestiniano. Dito isto, ninguém considera uma Noruega, uma Islândia ou Portugal como fazendo parte de um qualquer Império do Mal. Portanto não é de Ocidente que falamos, mas de agressores patológicos, como os EUA e Israel, que sim, devem ser criticados e moralmente condenados pelas suas acções, que alguns teimam em desculpar.


3) Quanto às migrações, importa referir que entraram mais de meio milhão de pessoas na Federação Russa, só em 2020, em busca de uma vida melhor. Se me perguntarem se eu gostaria de lá viver, diria, sem hesitações, que não. Contudo, se eu vivesse no Turquemenistão, no Cazaquistão ou no Uzbequistão, talvez pensasse duas vezes. É que a maioria das pessoas, quando deixa o seu país rumo a outro, vai, antes de mais, em busca de melhores oportunidades. E, para quem vive nesses países, a Rússia tem esse apelo. Até porque falamos de pessoas que não vêm de democracias, nem têm o mesmo mindset que nós. E mesmo nós, que nascemos e crescemos em democracia, não temos hesitado muito em viajar para paraísos democráticos como a China, os EAU, o Qatar ou a Arábia Saudita. Porque lá se respira direitos humanos? Não, porque se ganha bom dinheiro. Já agora, o país de onde chegam mais migrantes à Rússia é a Ucrânia. Pelo menos até 2020.


4) O Fernando diz que não se vê nenhum país a pedir para aderir à Federação Russa. De igual modo, também não se vê nenhum país a pedir para aderir aos EUA ou à República Federal da Alemanha. E isto acontece, parece-me, porque não é um procedimento existente. Não há nada de estranho, porque falamos de Estados, não organizações internacionais, como a NATO ou a UE, e não existe sequer um procedimento de adesão ou abertura para isso.


5) O argumento do iPhone, tão comum nas redes, é um dos meus preferidos. Faz-me lembrar, a propósito, a brilhante resposta de Gregório Duvivier, quando questionado sobre a ideia de “esquerda caviar”, como se ser de esquerda implicasse não possuir bens materiais, ao que ele respondeu algo como “deve estar confundido com a Igreja Católica. São eles que fazem votos de pobreza e não cumprem”. Isto é uma falácia. Rejeitar acções violentas e ilegais à luz do direito internacional, que agora tantos invocam (porque lhes convém), não implica, de forma alguma, rejeitar o progresso das sociedades ocidentais. Tal como ser crítico do capitalismo na sua forma mais selvagem não implica rejeitar todas as formas de capitalismo, que varia em função da regulação que permite a sua humanização. Usando o exemplo do futebol, é possível ser crítico do antro de corrupção em que se tornou o desporto, e, ainda assim, ir ao estádio apoiar a equipa.


6) “tá quieto”? Nada disso, Fernando. Espreita os números da emigração para paraísos democráticos como a China, os EAU, o Qatar ou a Arábia Saudita e terás aí a tua resposta. Não falta quem esteja disposto a ir viver para ditaduras, pelo preço certo em euros. Até o Dennis Rodman organiza jogos de basket para o seu amigo Kim.


7) No final, concordamos neste ponto: eu também prefiro viver aqui e lutar para que os nossos líderes sejam melhores e mais capazes, com direitos, liberdades e todas as coisas boas que o Ocidente, em particular a Europa, têm para oferecer aos seus. A diferença é que é precisamente essa liberdade que leva a que alguns, como eu, insistam em mostrar que não nos adianta ser democratas na metrópole, se depois andamos pelo mundo fora a invadir países e a matar pessoas porque queremos o petróleo deles. Ou a provocar guerras para vender armas. Ou a negociar com autocratas, financiando a opressão que impõem aos seus. Ou, pior, normalizando-os, apesar da opressão que impõem aos seus, que se torna mais legitima aos olhos de terceiros. E podia continuar e perder-me em enumerações, mas fico-me só por mais esta: o que se passa na Palestina e, principalmente, no Iémen, é uma drama humanitário sem comparação possível com o que se passa na Ucrânia. E sem ninguém para os ajudar. Porque as metrópoles democráticas já decidiram desumanizá-los e considerá-los a todos terroristas. Agora imaginem que havia um batalhão Azov na Faixa de Gaza, mesmo ao lado de Israel, com suásticas e palavras de ordem anti-semitas.