Há mais vida para além do medo # 2 – Mataram o James Bond e ninguém quis saber

(Continuando)

Recordo quando vi pela primeira vez no grande ecrã, um filme da saga 007. Foi uma experiência juvenil em forma de reposição, no extinto cinema Raione, no Porto: “007 – Octopussy”.

A partir dessa experiência, criou-se um inultrapassável diferendo entre mim e o meu pai, logo que o filme acabou e nos dirigíamos para casa: eu gostava de Roger Moore, o meu pai gostava de Sean Connery. Mas, numa coisa concordávamos: George Lazenby foi um erro de casting.

Aquele fascínio de beldades e perigos, que circundavam as missões de James Bond, as engenhocas e a sua capacidade de improviso, criaram laços de aventura e fantasia que me foram acompanhando ao longo de cada estreia.

Achei que Roger Moore foi 007 até tarde demais, por muito que fosse o meu predilecto. Quem mais poderia acabar uma luta de vida ou morte não só vencedor como, também, com o cabelo impecavelmente penteado? Só mesmo Moore.

E tive pena quando Timothy Dalton, um excelente actor formado na Royal Academy of Dramatic Art, não vingou na sua versão.

Posteriormente, Pierce Brosnan encheu as medidas de todos os fãs, conseguindo uma espécie de aliança entre a dureza de Connery e a elegância de Moore.

Mas, foi com Daniel Craig que veio a grande surpresa e, também a grande mudança na saga 007.

Daniel Craig tinha tudo para se dar mal como Bond: feições agrestes, expressão afivelada, baixo e modos rudes. No entanto, construiu e revelou um 007 muito mais autêntico do que qualquer um anterior. O que terá sido, também, a grande aposta dos produtores: a credibilização de 007 para além de uma personagem de fantasia. E Daniel Craig foi perfeito.

Todavia, esta nova versão de 007 trouxe um preço: James Bond era mais humano do que nunca. Ficava com feridas no rosto, sangrava, nutria e debatia-se com sentimentos. Resolvia as situações mais com instinto, força e carácter do que com engenhocas.

“Skyfall” foi a pedra de toque para a construção do passado de James Bond: a sua infância, a orfandade, a maturação de carácter e personalidade. E, cada vez mais, a sua humanização, sujeitava o personagem aos perigos do tempo.

Com “Spectre”, o passado e o presente colidem. E é com “No time to die” (título irónico, para não dizer cínico), que se precipita o grande final, outrora tido como impossível: James Bond morre de coração destruído por nunca mais poder tocar a mulher que ama e a filha que acabara de conhecer.

Há alguns anos atrás, quando foi anunciada a morte do Super-Homem, não faltaram manifestações de pesar e de protesto. Golpe de marketing ou não, o certo é que a morte de Super-Homem desencadeou reacções, e o super-herói foi ressuscitado.

James Bond, depois de toda a humanização a que foi sujeito, não poderá ser ressuscitado, creio. Até porque a sua morte foi peremptória, sem margem para dúvidas. E não uma morte encenada, como em “You only live twice”. Bond morreu. Ponto final.

E a minha estranheza é esta: o James Bond morreu e ninguém quis saber.

Um personagem que ao longo de décadas foi um ícone de fantasia, de sonho, uma referência de aventura e diversão para gerações, morre destroçado. E tudo é aceite, sem ser sequer questionado ou reclamado.

Estaria o personagem esgotado? Sem público? Sem interesse? Sem mercado? Efeito da pandemia?

Não creio, pois a substituição de Daniel Craig era, à semelhança de casos anteriores, alvo de acesa especulação e discussão entre fãs. E a receita mundial de “No time to die” foi, até ao momento, de 708 milhões de dólares, em plena pandemia.

Receio que o mundo que nos é apresentado, sistemática e diariamente, como perigoso, embrulhado em medo e com um laço de descrença, nos esteja a tornar tão apáticos, que já nem o nosso direito à fantasia somos capazes de reivindicar. Que já nem os nossos heróis de aventura somos capazes de proteger.

Se for o caso, este mundo está a ficar demasiado asséptico para o meu gosto.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    Um herói misógino, violento, e xenófobo nunca morre; ainda por cima quando se ressuscita a Guerra Fria dos inteiramente bons contra os inteiramente maus onde melhor é impossível: estão todos os bons valores ocidentais preparados para mais filmes. Craig é que não estava para mais disso, depois de 2 filmes e meio de destruição de neurónios.

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