Ortografia: apocalipse agora

apocaliticas

Em mais uma volta, mais uma viagem, por um manual de Português de 10º ano, descubro a pergunta acima fotografada, relativa ao soneto “O dia em que eu nasci, moura e pereça”, essa variação talvez camoniana sobre o Livro de Job.

Graças ao chamado acordo ortográfico (AO90), ali está o adjectivo “apocalíticos”. Os autores do manual, para que os alunos não tenham dúvidas, explicam, entre parêntesis, que esta palavra significa “de grande desastre”. Talvez por falta de espaço, não indicam que o adjectivo é da família de ‘apocalipse’.

E, na verdade, como poderiam indicar tal coisa, se o AO90 obriga à separação de membros da mesma família?

Mais uma volta, mais uma viagem, por alguns instrumentos que, alegadamente, ajudam o escrevente a aplicar o AO90.

A Infopédia aceita “apocalítico”, embora, pela transcrição fonética, deixe claro que se pronuncia, por assim dizer, “apocalíptico”. Ora, uma pessoa estranha: mas não impõe o AO90 que se escreva como se pronuncia? Por outro lado, a Infopédia, também aceita que se escreva “apocalíptico”. [Read more…]

“Contate hoje mesmo!”

contateOntem, numa hora, para mim, matinal, saí de casa, a fim de tomar o primeiro café do dia. A minha única preocupação era saber que teria de disputar o jornal “da casa” com os quatro ou cinco reformados que passam por cada página com uma calma enervante, incluindo a necrologia e os anúncios das meninas que prometem dar vida a mortos. Ao passar pela caixa de correio, verifiquei que já lá estava o habitual prospecto de uma imobiliária. Na frente e no verso, podia ler-se “Contate [sic] hoje mesmo!”, como poderão confirmar na imagem que simpaticamente compartilho. A urgência do primeiro café tornou-se ainda mais urgente. É nestes momentos que admiro a fleuma do Francisco Miguel Valada, que consegue manter a elegância mesmo quando recolhe amostras de fatos e de contatos.

Como é que o verbo contatar  e o nome contato entraram pelos prospectos do nosso país? Façamos, à imitação de outros muito mais sabedores, um resumo da história do chamado acordo ortográfico (AO90). O AO90 foi criado porque, na opinião (ou nas declarações) dos seus autores, era preciso, necessário, fundamental, imprescindível criar uma ortografia única no universo dos países lusófonos. Resultado: muitos desses países ainda não adoptaram o AO90 e entre os países que o adoptaram continua a não haver uma ortografia única ou deixou mesmo de haver ortografia. [Read more…]

Diga ‘expectativa’!

expectativa2Prometi, ontem, que voltaria à expectativa, porque posso.

Vamos por partes, que é Agosto.

Os autores do chamado acordo ortográfico (AO90) valorizam aquilo a que chamam “critério fonético”. De modo simplista, isso quer dizer que devemos escrever conforme pronunciamos, o que, por sua vez, significa que não devemos escrever aquilo que não pronunciamos.

António Emiliano, entre outros, já explicou a impropriedade da expressão “critério fonético” e o disparate em que consiste. Mas deixemos isso, por instantes, porque a expectativa é grande.

Preocupados com o tal “critério fonético”, os autores do AO90 declaram basear-se numa certa e determinada norma culta. Confrontado com a dupla grafia da palavra “expectativa”, revisitei, mais uma vez, o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, em busca da transcrição fonética da palavra. Como puderam ver mais acima, embora se admitam duas realizações possíveis para a primeira sílaba, o C pronuncia-se. [Read more…]

As expectativas do acordo ortográfico

Ser professor dá-me, graças ao contacto com os jovens, a possibilidade de aprender, com bastante frequência, novas expressões e novas piadas, porque as modas, como é da sua natureza, vão variando entre o tempo e o espaço. Sendo um curioso da língua e da linguagem, fico sempre fascinado com a descoberta do desconhecido e é sempre com prazer que junto mais uma palavra ou mais uma frase à minha colecção de cromos linguísticos.

Recentemente, adquiri uma mutação humorística da célebre resposta “porque sim”, muito utilizada por pais cansados de explicar ordens. Trata-se da resposta “porque+forma do verbo poder”. Há pouco tempo, um jovem lançou como que uma adivinha: “Porque é que os romanos invadiram a Grã-Bretanha?”. Diante do desconhecimento revelado pelos ouvintes, respondeu “Porque podiam.” Simples e barato.

Na semana passada, li na revista dominical do JN uma entrevista a Rui Unas. A palavra “expectativa” surgiu grafada das duas maneiras aparentemente permitidas pelo chamado acordo ortográfico (AO90), como poderão verificar nas imagens publicadas mais abaixo. Por que razão é que o jornalista fez isso? Porque podia, claro, autorizado pelo Priberam, pela Infopédia e pelo Vocabulário Ortográfico Português. [Read more…]

Dêmos ou demos? Porto Editora aconselha a grafia de 1945

Volto a deambular, indeciso entre o choro e a gargalhada, pela página que a Porto Editora criou para responder a dúvidas frequentes sobre o alegado acordo ortográfico (AO90).

Desta vez, houve duas entradas que me chamaram a atenção: 18. Já não é obrigatório colocar acento em formas do passado como ganhámos? e 21. A forma verbal dêmos do conjuntivo deixa de ter acento?

Em ambas as respostas, os autores remetem para o texto do AO90, o que está de acordo com os objectivos da página, aparentando coerência. Na verdade, o acento nas formas referidas era obrigatório e passou a ser opcional. O leitor acentuou? Está certo. Não acentuou? Está igualmente certo.

No que respeita ao cor-de-rosa, a Porto Editora defende que se possa escrever com ou sem hífenes, contrariando o texto oficial do AO90 e socorrendo-se do VOP, ou seja, quando o chamado acordo ortográfico obriga a que se mantenha a grafia de 1945, o VOP estipula uma dupla grafia, sendo que uma delas estaria sempre errada à luz de qualquer um dos dois acordos ortográficos mais recentes.

A mesma Porto Editora, confrontada com a possibilidade de não se  usar acentos nas formas verbais acima mencionadas, recomenda, agora, que sejam acentuadas, mesmo que o AO90 seja preguiçosamente indiferente a isso. [Read more…]