Relativismo fanático

Relativismo fanático

Das montanhas do Paquistão aos comícios do Tea Party, os fanáticos crescem como ervas daninhas e multiplicam-se como mosquitos no Verão: matas um, aparecem mais 10. E não te deixam dormir. Era tempo de varrer este entulho da face da Terra. Antes que o entulho nos varra a todos e à Terra.

“O século XXI será espiritual. Ou não será.” (André Malraux)

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André Malraux fotografado por Germaine Krull (por volta de 1930)

«O enfraquecimento ou o desaparecimento da religião parecem estar, para alguns, na origem do comunismo ou do nazismo. Será verdade que apenas um sentimento de entrega a algo que está acima e para além do ser humano pode criar as condições de tolerância e de compreensão entre os homens? Antes de mais: terão as religiões assegurado “as condições de tolerância e de compreensão entre os homens”?

Não foi o caso das religiões assíria [cujos deuses eram antropomórficos] e asteca [também politeísta, e xamanista]. (…) Algumas das leis mais atrozes foram enunciadas por sábios confucionistas; mas o confucionismo não passa de uma religião dos mortos. A mitologia grega não é edificante (…). Parece-me que há duas religiões que terão desempenhado o papel que a generalidade das pessoas considera verdadeiramente importante, as que unem o amor e a compaixão: o cristianismo e o budismo. Embora o tenham apenas podido desempenhar como deve ser durante uma parte da sua história.

O Cristo bizantino animou durante mil anos uma civilização de amor sem piedade. Dois em três imperadores bizantinos foram assassinados ou torturados. (…) No século XIII, o cristianismo ocidental cumpre um dos mais elevados destinos da História: constrange o Homem à virtude (…). Cria um herói submetido aos ensinamentos da sua fé (…) Através de Cristo, pelo seu exemplo. Mas não foi o suficiente.

Uma religião une os homens na medida em que faz de cada um próximo. Apesar de esse próximo se limitar, na maior parte dos casos, a ser um correlegionário, e, por mais superficial que tenha sido o humanitarismo do século XIX, somos forçados a constatar que coincidiu com um dos séculos menos cruéis da História… O principal adversário da tolerância não é o agnosticismo, mas o maniqueísmo: nazis e comunistas, mesmo se ateus, são maniqueístas. [Read more…]

A caminho do fundamentalismo?

No Brasil, o poder das instituições religiosas é cada vez maior. A radical IURD, com os seus “exércitos” de aparente inspiração fascista e a fraude da venda de indulgências é apenas uma face de um país onde a laicidade parece não ter lugar.

Yael Ronen

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© Schaubühne

A encenadora israelita Yael Ronen (n.1976) esteve no passado mês de Julho em Lisboa para, no âmbito do Festival de Teatro de Almada, apresentar no Teatro Nacional D. Maria II a sua mais recente criação: A véspera do dia final. Encenadora associada da Schaubühne (a mítica companhia de Berlim), Ronen foi nomeada em 2009 para o New Theatrical Realities Prize, um importante prémio europeu que reconhece a originalidade e a inovação das dramaturgias emergentes. Oráculo prudente, a encenadora trabalha no fio da actualidade, constantemente seguindo o que está a passar-se no teatro do Mundo, incessantemente actualizando o seu objecto teatral: “Estamos sempre prontos para que no fim da representação o Mundo já não seja o mesmo”, explicou a um jornalista alemão. As suas peças têm normalmente actores de diferentes nacionalidades (sobretudo israelitas, alemães e palestinianos), com quem Ronen trabalha em conjunto os seus textos, levando para as peças partes do próprio processo criativo: os telefonemas dos pais dos actores árabes e judeus, pedindo-lhes para que não representem terroristas, para que não falem mal da própria religião; o actor israelo-palestiniano que não teme o terror no Médio Oriente mas sim que alguém em Berlim, onde os teatros não têm checkpoints, entre armado pela Schaubühne adentro e o mate.

Constantemente no fio da actualidade, Yael Ronen tenta contudo ver para além das parangonas dos jornais e da desinformação que distraem a Humanidade daquilo que está a acontecer-lhe: a alienação pela religião, o recrudescimento das identidades nacionais, os grandes conflitos cujos desfechos terão inelutáveis consequências para todos, e de que é evidente paradigma o estado das coisas na Cisjordânia. O racismo, o preconceito, o fundamentalismo religioso, a violência por detrás dos falsos compromissos de negociação entre povos desavindos, a manipulação a que estão constantemente sujeitos, a desesperança: eis a combinação explosiva que segundo Ronen (mas não está sozinha nessa visão) nos afectará a todos se não interviermos atempadamente. Para dissecar as idiossincrasias de tudo o que nos separa ou reúne, Yael Ronen e a sua trupe abordaram as religiões como produtos nos quais apenas o marketing (essa ciência que é um remédio santo) parece ser capaz de encontrar qualidades. Assim, requalificando comercialmente os grandes símbolos (Jesus não já na cruz mas numa cadeira eléctrica, ou o judaísmo como religião de elite – “apenas 0,3% da população mundial mas 35% dos prémios Nobel”), a encenadora israelita consegue demonstrar-nos a que ponto a globalização da bárbara cultura da economia está a alienar-nos da histórica vocação universalista da Europa – actualmente paralisada, apenas capaz de, através do seu tribunal internacional, declarar ilegal o muro de várias centenas de quilómetros que separa os ‘ocupas’ de Israel dos restantes territórios palestinianos.