Postcards from the Balkans #02

‘Dum vita est, sevdah est’*

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Levanto-me cedo, para meu hábito. Ljubljana é uma cidade pequena. A Eslovénia é um país pequeno. 2 milhões de habitantes ao todo, no país. Cerca de 900 mil na cidade. Pouca gente. E nota-se. Já ontem mencionei o silêncio. Está em toda a parte e é perfeito. Ljubljana é a cidade perfeita, para quem aprecia este género de perfeição. Eu gosto. Mas prefiro – ou aprecio mais – lugares menos perfeitos. Já o silêncio… bate-me em cheio no corpo quando saio do hotel e meto pela minúscula viela que vai dar à praça Mesint com a fonte dos três rios no centro e as torres da igreja de S. Nicolau atrás.

O silêncio leva-me ao mercado, na praça Vodnikov. Incrivelmente – trata-se de um mercado – o mesmo silêncio, que explode nas cores das frutas, dos legumes, das flores. As cores são a única coisa que interrompe o silêncio, especialmente o longo amarelo dos grandes girassóis. Passeio entre as bancas. Fotografo uma senhora que vende legumes. As flores. Outra vez as flores. Depois vou à procura do funicular para o castelo. Podia subir pela Studentovska, mas a rua parece-me íngreme demais (se tivessem os meus pés, compreendiam).

Ao virar da esquina encontro o funicular. Apenas 70 metros mas a pique. Nem olho para baixo, com as vertigens. Chego ao castelo e sento-me a beber um café. Há alguns turistas, mas estão, claro, silenciosos. Mesmo as crianças não fazem barulho, ainda que corram e saltem pelos pátios. Do cimo do castelo vê-se uma boa parte da cidade. Uma vista perfeita e é capaz de soar mal se não disser que é deslumbrante. Ando por ali a ver o que há para ver das vistas e das pedras e depois resolvo descer a pé. Atravesso primeiro uma longa ponte de madeira, altíssima. Vou agarrada ao varandim mas assim mesmo, a meio, tenho de repetir para mim própria que está quase, olhando sempre em frente. Alcanço terra firme. Quero dizer, terra firme mas a pique. A descida é a pique, sinuosamente a pique. Respiro fundo. Sim, se tivessem os meus pés percebiam, volto a repetir.

Quando chego ao fim da descida quase me apetece dar uma gargalhada. Não dou. Não ia agora estragar o silêncio! Caminho em direção à ponte tripla, atravesso-a e chego à praça Presernov, que é o centro, pode dizer-se. Há muita gente na praça, bicicletas, cães… de repente um homem vestido de branco atravessa-a numa bicicleta carregando numa mão um ramo enorme de girassóis embrulhados em papel também branco. Fico tão, como dizer, maravilhada, que perco o instante da fotografia. Escrevo isto para não me esquecer, no entanto.

Atravesso a Presernov trg.em direção à rua Mikloszceva, cheia de edifícios arte nova e arte déco. A meio sento-me numa pequeníssima praça, com uma fontezinha. O barulhinho da água é refrescante. Há duas ou três crianças a brincar. Uma menina mergulha os pés na àgua e sorri-me. Continuo a camingar em direção à rua Dalmatinova, depois viro à esquerda para a avenida Slovenska. Ontem o Armin (o taxista) tinha passado por ali e apontado o edifício mais alto da cidade… o Neboticnik. Para arranha-céus digamos que é muito modesto. Uns meros 12 andares, mas o prédio é bonito e a vista deve ser boa. Subo no elevador até ao 12º andar. Há um bar. A vista é soberba. Silenciosamente soberba. Peço uma limonada e uma salada e fico ali um bom bocado. Leio um bocadinho de ‘o pátio maldito’, do Ivo Andric.

A máquina fotográfica fica sem bateria. Resolvo ir um bocado ao hotel, carregá-la. Ainda bem que a cidade é pequena. Continuo, assim, Slovenska abaixo, até encontrar a rua Copova, depois viro à direita até à ponte dos Sapateiros, que atravesso, para encontrar a rua do hotel, mesmo à direita, do outro lado do rio. Carrego um bocado a bateria, leio. Depois saio outra vez. Resolvo fazer um pequeno cruzeiro no Ljubljanica. Perto do hotel há um cais. Pergunto quando parte o barco. Acabou de partir um, o próximo só daqui a uma hora. Voltarei, mas entretanto vou de novo à praça Presernov e sento-me num banco, a beber àgua e a ver as pessoas.

Aproxima-se uma senhora com uma criança e pergunta-me em esloveno onde são os correios. Percebi a pergunta, era fácil, mas não sei responder por duas razões: não falo a língua e não faço ideia onde são os correios. Um homem no banco ao lado, ouve a pergunta e a resposta e dà as indicações à senhora. Entretanto um casal senta-se ao meu lado. A senhora diz-me olá e pergunta-me, em inglês, como estou. Estou bem, digo entre o ligeiramente espantada e o divertida, e a senhora? Também. Sorrimos. Volta-se para mim e diz que é da China (penso: óbvio) e eu de onde sou? Portugal. Encolhe os ombros e abana a cabeça. Nunca ouviu falar. Brilhante, penso eu, invejosa. Mas ainda lhe digo: Portugal, ao lado de Espanha, está a ver? Ah, Espanha. Claro. E para ali ficamos, até que eu me levanto para apanhar o barco.

No barco estou só eu. O rapaz diz-me que sou uma cliente vip, pois tenho o barco só para mim. Melhor, penso, mas não lhe digo. Já o barco saiu do cais, quando chega um casal, francês, percebo depois. Acreditem ou não, o rapaz volta para trás e apanha os franceses. Assim como assim, falam pouco. De vez em quando sorrimos polidamente. Uma viagem perfeita. Sei que estou no meio de uma cidade, sei, mas se não soubesse podia dizer que estava numa aldeia qualquer. Que sossego, que perfeição silenciosa, esta viagem.

Até à hora do jantar deixo-me andar por ali, a deambular. Janto na Gostilna Sokol. Bife e legumes grelhados. uma cerveja preta, feita ali mesmo. Chega um grupo enorme de ingleses. Falam muito alto. Arruinam todo o sossego que havia antes, apesar de a esplanada estar cheia. Um deles pergunta insistentemente aos outros: ‘ há wi-fi?’. Há. Acabo por lhe dizer a password a ver se se cala. Liga-se. Mas continua, com os outros, a fazer barulho. O empregado pergunta-me se quero sobremesa e mostra-me os doces tradicionais. Peço uma Prekmurska Gibanica e mais valia näo ter comido o bife. Aquilo é enorme. Até os ingleses param de fazer barulho por um segundo para olharem embasbacados para a Gibanica. Massa filo, nozes, passas, queijo amargo, sementes de papoila. É muito bom, mas não sou capaz de comer tudo, naturalmente.

Para digerir a Gibanica resolvo ir até à rua Beethevnova. Vi no meu guia que há lá um clube de jazz… o Jazz Club Gajo que, parece, tem boa programação, apesar do nome. Encontro a rua, mas viro à esquerda em vez de à direita e, claro, não vejo o clube. Continuo a andar. Pode ficar para amanhã. Atravesso o parque Zvezda, cheio de gente, mas tranquilo e chego outra vez à margem do Ljubljanica, que começo a percorrer até à ponte dos Sapateiros, outra vez. De repente ouço um saxofone. Somewhere over the rainbow. Já ouvi versões piores. Sento-me num banco. Além do saxofone, há uma guitarra. Tocam standards, a maior parte jazz. Sabe-me bem. Enquanto há vida…

* em esperanto: ‘enquanto há vida, há esperança.

Comments


  1. Uma delícia de roteiro… deliciosamente contada!
    Beijos