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Queixa-se a generalidade dos cidadãos portugueses da perda de soberania como consequência da tomada de decisões em Bruxelas. Com razão? Nem sempre. Convém analisar bem e caso a caso, até que ponto é o próprio governo português que está a facilitar e até usar essa passagem de responsabilidade – e portanto de soberania – para longe. Não estou a referir-me à extremosa diligência com que o governo PàF andou a esfarelar o tecido social do país em conluio com a troika e suas imposições. Refiro-me a este governo actual, que supostamente será menos surdo do ouvido aberto aos interesses dos cidadãos em geral. Este governo português é uma das vozes que defende em Bruxelas que os acordos de “comércio livre” (CETA – UE/Canadá e TTIP – UE/EUA) – que, pela calada, permitem o desmantelamento de normas e direitos europeus e a sobreposição dos direitos dos investidores aos dos cidadãos – são da exclusiva competência da UE. E é também uma das vozes que, perante o ajoelhar da comissão aos protestos dos cidadãos, cedendo à ratificação do CETA também nos parlamentos nacionais, é a favor desse inconcebível truque da sua “aplicação provisória” antes dessa passagem pelos parlamentos nacionais.
Argumentando que a política comercial externa comum constitui explicitamente uma das competências exclusivas da União, e sem sequer informar devidamente os cidadãos – que percentagem de portugueses já terá ouvido falar no CETA??? – quer este governo fazer passar despercebida a aplicação de um acordo que
- inclui um mecanismo (Investment Court System, ICS) que vai permitir que empresas estrangeiras processem estados, em tribunais privados, no caso de as políticas públicas (por exemplo um aumento do salário mínimo nacional) ameaçarem os seus lucros futuros: um tratamento todo especial para os investidores, acima dos tribunais nacionais e europeu;
- propicia a privatização dos serviços públicos e impossibilita o seu retrocesso à esfera pública;
- abre as portas à importação de produtos agrícolas, aumentando a concorrência no já difícil sector alimentar e agrícola, ameaçando a existência de pequenas e médias empresas;
- compromete os padrões da UE em matéria de segurança alimentar ou de protecção do meio ambiente e dos consumidores, através de uma “cooperação regulamentar” que pode influenciar a legislação ainda antes de ela ser aprovada; em especial, contém disposições para aumentar a cooperação regulamentar UE-Canadá na área das biotecnologias. Sendo o Canadá o 3º maior fabricante de OGM do mundo, está em causa a atenuação da proibição dos OGM na UE.
Num debate público sobre o TTIP promovido pelo PS no início de Julho, Augusto Santos Silva, ministro dos negócios estrangeiros, argumentou que o CETA era um bom acordo, o que, na sua opinião, daria confiança também quanto ao resultado das negociações sobre o TTIP. Um bom acordo Sr. Ministro???
Seremos nós carneirinhos confiantes de que tudo vai correr bem, quando vão ser deslocadas as baias que condicionam os nossos direitos, os nossos padrões, a nossa soberania? Neste assunto, o governo do PS não está nada incomodado com essa questão da soberania, antes pelo contrário: faz toda a questão de que seja tudo “EU only”. O CETA vai ser discutido na Assembleia da República sim, mas isso acontece por mor de uma petição de cidadãos portugueses informados e conscientes; e mais! para surpresa e contra a vontade do governo, acabará mesmo por ter de ser sujeito a ratificação na AR, facto que se deve à oposição de uma larga camada de cidadãos europeus bem informados sobre as consequências nefastas destes acordos para a vida de todos nós. Gente que não quer abdicar da soberania nacional.
Para os que acham que um governo de esquerda é sinónimo de perfeição (se bem que há a esquerda “esquerda” e a esquerda PS que é um pouco diferente..), eis uma razão para não baixar a guarda. Nem que seja para provar aos ideólogos de direita que há o ser de esquerda e há o ser crítico, que são dois conceitos que podem e devem conviver juntos.
Idealmente o governo seria um organismo representativo da maioria dos cidadãos de um país. Idealmente. Infelizmente o máximo que podemos almejar é uma taxa de compatibilidade decente o que tira trabalho do lado dos cidadãos. Nesse aspecto a Geringonça é claramente mais “low maintenance” que os Páfianos. Mas nem ela deve ser deixada em piloto automático como se prova neste blog.
O TTIP e o CETA são dois presentes envenenados que andam à uns bons anos a serem forçados pelas goelas dos governos europeus. São muito atractivos do ponto vista político mas absolutamente nefastos do ponto de vista social.
O BE e PCP são abertamente (e bem) contra estes acordos. O PS aparentemente não (mais uma vez acredito que existem duas facções no partido em relação a este tema – o velho PS vs o “novo” PS). Mais uma boa oportunidade de meter as engrenagens da Gerigonça a trabalhar como deve ser.
Um dos embustes que essa canalha da extrema direita reivindica é o dos licenciamentos.
Que é demorado. Que prejudica as empresas. Que prejudica a economia. Que prejudica o crescimento. Que é um mal principal, e que é preciso acabar com ele.
Uma das alterações que o PAF fez, foi retirar a fiscalização do ar condicionado das industrias, do estado para o privado, a bem das empresas e da economia, pois está claro.
Logo a seguir, em Sacavém, para mal dos cidadãos, a infestação do espaço público urbano, que resultou em 400 infectados e 19 mortos pelo menos, fora todos os outros prejuízos para os cidadãos e para o estado.
Os ignorantes gritam Simplex, como se fosse uma panaceia universal, sem sequer saberem do que falam.
Quem tem a responsabilidade civil e política, pelo abandalhamento do licenciamento e da fiscalização, e pelo assassinato de cidadãos?
Os funcionários públicos?
A tristeza é que se for a votação no nosso parlamento, PS, PSD e CDS votarão a favor e ratificam um acordo que é um autêntico ataque aos valores europeus (os que ainda sobram) e mesmo ao estado de direito democrático.
Tribunais privados para grandes multi-nacionais processarem os estados, democracias (milhões de eleitores) de braços atados e com uma voz com cada vez menos poder.
Eis a 3ª via do PS (centro) e o neo-liberalismo da direita (radical)… depois admiram-se quando os extremos crescem por todo o lado. Eu, ex-europeísta (!) cada vez mais digo: força Le Pen e companhia.