Bons ventos

A questão catalã deixa pouco espaço para outras notícias vindas de Espanha, mas, por estes dias, há um caso a chegar aos tribunais espanhóis que é de todo o interesse acompanhar.

Manuela Carmena, presidente da câmara de Madrid, apresentou queixa em tribunal contra a decisão da sua antecessora, Ana Botella, de vender 1.860 casas de habitação social a um fundo-abutre norte-americano. Para tal, apoia-se no relatório da Câmara de Contas do executivo da autarquia madrilena e a sua intenção é poder vir a anular a venda e recuperar as habitações.

As casas VPO (“Viviendas de Protección Oficial”) são habitações de preço limitado, parcialmente financiadas por dinheiro público, a fim de garantir que cidadãos com dificuldades económicas possam comprar ou arrendar habitações dignas.

E se vender casas com estas características a um fundo dedicado à especulação financeira, parecia, desde logo, de uma flagrante insensibilidade (veja-se este caso, de 2014, de um homem desempregado e doente com cancro, a quem os novos senhorios não aceitaram negociar o pagamento das rendas em atraso, e que foi despejado), agora sabe-se que foi também uma medida ruinosa para os cofres da autarquia.

O relatório da Câmara de Contas assinala que Ana Botella não respeitou os procedimentos legais para a venda de património público, não defendeu os interesses dos moradores, e vendeu as casas a preços inferiores aos de mercado. Um negócio que parece ter sido feito à medida para colocar nas mãos de privados, ao custo mais baixo, património imobiliário que foi financiado pelos contribuintes ao longo de décadas com o objectivo claro de garantir que o direito a uma habitação digna chegava a todos.

O comprador, o grupo Blackstone, já é detentor, só em Espanha, de uma carteira imobiliária acima dos 12.000 milhões de euros. Acumulou-a durante a famosa “crise do tijolo”, o período negro entre 2008 e 2014 em que inúmeras construtoras faliram, os preços dos imóveis caíram a pique, e as famílias endividadas descobriram que nem sacrificando a casa, que afinal nunca fora sua, podiam pagar a dívida à banca. Estima-se que entre 2008 e 2012, terão sido efectuados mais de 170 mil despejos, mas os números reais podem ser muito superiores. O impacto social desta crise pode medir-se pelo número significativo de associações criadas para defender os direitos desses cidadãos e pela importância social e política que alcançaram. De resto, Ada Colau, actual autarca de Barcelona, e primeira mulher a ocupar esse cargo, foi uma das fundadoras da “Plataforma de Lesados pela Hipoteca” de Barcelona.

Caberá agora ao tribunal avaliar se, como diz o relatório, Ana Botella ofereceu um negócio milionário a um grande grupo económico à custa dos interesses da cidade que geria, e deixou entregues aos abutres os cidadãos cujos direitos era sua obrigação defender. Vieram, entretanto, a público os resultados de uma investigação posta em marcha por associações de lesados por esta venda, que apontava para a ligação entre as empresas de que é conselheiro José María Aznar Botella (filho de Botella e do ex-primeiro-ministro Aznar), e a Blackwell.

Nada de novo para a família Aznar-Botella. Diz-se, em Espanha, que é difícil encontrar as diferenças entre a foto dos convidados da boda da filha do casal e a foto dos arguidos do gigantesco caso de corrupção “Gürtel”. Os participantes são praticamente os mesmos.

Para já, ficam os primeiros esboços de uma história já muito repetida: governantes que exercem cargos públicos como se gerissem a sua propriedade privada, que sacrificam a defesa dos mais fracos aos interesses dos grupos económicos, e governam com total desprezo pelo futuro e pelas consequências para os vindouros. Botella deixou o cargo apenas manchada pelo seu fraco inglês na apresentação da candidatura de Madrid aos Jogos Olímpicos de 2020 (“A relaxing cup of café com leche”), a Blackwell aumentou o seu colossal património, e o negócio, definitivamente fechado, deixou dezenas de famílias a enfrentar, sem o apoio da autarquia, enormes aumentos das rendas, pressões e tentativas de despejo.

Esta visão dos negócios público-privados como um imenso campo de batalha, onde os mais pobres são peões de fraca valia e desdenháveis direitos, e os detentores de cargos públicos se convertem já nem sequer em parceiros mas em servidores dos grupos económicos, tem prosperado praticamente sem sanções, lá como cá. Esperemos que de Espanha nos sopre desta vez o bom vento de uma sentença exemplar.

Comments

  1. JgMenos says:

    Os ‘abutres’ despejaram 12.000 milhões de euros em cima do ‘progresso’ falido?
    Agora é bom de ver que a missão patriótica e de esquerda é roubá-los.

    • Paulo Marques says:

      O Menos sempre pronto a defender os dependentes do estado.

  2. Miguel bessa says:

    “governantes que exercem cargos públicos como se gerissem a sua propriedade privada, que sacrificam a defesa dos mais fracos aos interesses dos grupos económicos, e governam com total desprezo pelo futuro e pelas consequências para os vindouros” e nós cá tivemos um bom exemplar, José Sócrates.
    Rebentou com a PT. Rebentou com a CGD. Mas o grupo lena e o seu amigo foram felizes. Só faltou mesmo o tgv.

  3. Felizmente, cá em Portugal não é assim, não é a Blackstone, mas a “Investments 2234 Overseas Fund IV B.V.F.P.Blackstone, com sede em Amsterdão, um mero apartado sem qualquer funcionário.

  4. Ana Moreno says:

    Bem precisamos também de uma Ada Colau e de uma Manuela Carmena por cá… e como dizes Carla, “Esperemos que de Espanha nos sopre desta vez o bom vento de uma sentença exemplar”…
    A aguardar o desfecho 🙂

  5. Eu Mesma says:

    Ana Botella? É da família do inenarrável José Maria Aznar. Teve quem a aconselhasse bem. Gente do PP tudo bons rapazes e raparigas!

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