Um pequeno corte às arbitrariedades

Não encontrei (ou por outra, o motor de pesquisa não encontrou) a notícia em nenhum media português; e no entanto, ela detém forte relevância para os cidadãos europeus. Ontem, o Tribunal de Justiça da União Europeia comunicou a sua decisão no caso Eslováquia / Achmea, relativa à cláusula de arbitragem constante do acordo sobre a protecção dos investimentos celebrado entre os Países Baixos e a Eslováquia. E reza assim: NÃO é compatível com o direito da União. 

E porque é isto assim tão importante? Estamos a falar do tema sobre o qual escrevi aqui no Aventar múltiplos posts*: o perverso ISDS (Investor-State Dispute Settlement), o mecanismo arbitral que subtrai a estados soberanos o poder de decisão jurídica, criando uma justiça paralela que outorga amplos direitos a investidores estrangeiros (= multinacionais). Quem diz ISDS, diz o seu mano com pele de carneirinho, o ICS (Investment Court System), contido no acordo de comércio e investimento UE/Canadá, o CETA. O ICS é um ISDS supostamente público e “bom”, pois, absurdamente, passa a ser financiado pelos cidadãos. Mas padece das mesmas fundamentais aberrações destinadas apenas e só a apetrechar as multis com uma ferramenta jurídica, superior, executória, para arremessarem aos estados quando estes tomam decisões que não lhes convém. Em Portugal, o retrocesso do governo em relação à EDP quanto às “taxa das renováveis” foi um belo exemplo do chamado “chilling effect” do ISDS, o efeito intimidatório, que actua ANTES de ser aprovada legislação desfavorável às multis.

Mas voltando à decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, o Tribunal deu ontem a saber que o ISDS não é legal entre estados-membros da UE, porque “Esta cláusula subtrai ao mecanismo de fiscalização jurisdicional do direito da União litígios que podem ser relativos à aplicação ou à interpretação deste direito” e “Nestas condições, o Tribunal de Justiça conclui que a cláusula de arbitragem constante do TBI viola a autonomia do direito da União e, por conseguinte, não é compatível com este direito.

Parece que não é nada, mas é: são 196 Tratados Bilaterais de Investimento (esses que garantem o ISDS aos investidores) intra-Estados Membros, que são afectados por esta decisão. No total e a nível mundial os EMs assinaram 1600 TBIs: É toda uma rede armadilhada de justiça paralela, um roubo de soberania, que os governos andam para aí a assinar sem dizerem nada a ninguém. Porque gostam de nos oferecer de bandeja aos predadores.

Esta decisão foi uma vitória para o movimento cívico europeu contra o ISDS e seus derivados. Uma vitória para os cidadãos, que ficaram um bocadinho menos expostos às garras das multis. Lindo, lindo, era que o Tribunal de Justiça, quando se vier a pronunciar sobre o ICS do CETA (processo a decorrer), também o considerasse incompatível com o direito da União. A ver.

Mas a Comissão não dorme na forma e está em vias de obter um mandato para negociar o MIC – o Tribunal Multilateral de Investimento. Uma ideia toda dela, ela que serve as multis, contra os cidadãos.

*Por exemplo, este, este e este.

Comments

  1. Paulo Marques says:

    Uma leitura na diagonal do acordo não me deixa descansado, é um pormenor técnico. Ficava mais satisfeito se um dos motivos fosse a concorrência desleal entre estados membros.

  2. Ana Moreno says:

    Não percebo, a que acordo se refere??? Caso se refira ao acórdão, Paulo Marques, comentar sem ter a mínima noção de que se trata, não resulta.

    • Paulo Marques says:

      Ao primeiro link, é bastante explícito. Bastava a criação de um ISDS a nível europeu que a decisão era a oposta, pois passava a existir um orgão judicial europeu competente.

      • Ana Moreno says:

        O primeiro link é para o acórdão, por isso não bate certo com o acordo no seu comentário.
        “Bastava a criação de um ISDS a nível europeu”… Caro Paulo Marques, acho que já há desgraça que chegue ao nível da realidade, escusamos de ter ideias mais negras e, pelo menos de momento, sem base real (falamos intra-EU).

  3. Rui Naldinho says:

    “NÃO é compatível com o direito da União. ”

    Sauda-se a decisão, mas temos de recear que um dia destes, até os juizes, ou os árbitros, como lhe quiserem chamar, do Tribunal de Justiça da União Europeia serão tomados de assalto pela seita do costume. Será o passo seguinte. Um bocado como a guerra do PS com o PSD, ou vice versa, pelos juizes do nosso Trib. Constitucional.
    A UE cada vez se parece mais com um banco, no sentido usurário do termo.
    Legislam com uma banana na mão. A maioria dos Estados, os mais pobres, famintos de tudo, do crédito ao investimento que não conseguem pelos seus próprios meios, incluindo a capacidade de se reendividarem de novo, aceitam sem grandes restrições qualquer benesse a curto prazo, mesmo pequena que seja, destes agiotas, não percebendo que hipotecam a sua própria independência. Assinam de cruz, como os ignorantes.

    • Ana Moreno says:

      Agiota, hipócrita e anti-democrártica ela sem dúvida é; agora, é feita pelos nossos próprios governos e, por essa via, em última análise, por nós, certo?
      Anyway, foi uma vitória e é para festejar 🙂

  4. De novo a saúdo; Ana !

    ” Lindo, lindo, era que o Tribunal de Justiça, quando se vier a pronunciar sobre o ICS do CETA (processo a decorrer), também o considerasse incompatível com o direito da União. A ver.”

    Tem esperança ? dê.me um pouco da sua, Ana, que cada vez mais o mundo me assusta tomado de assalto,
    e que esta sua frase resume, somos mesmo oferecidos de bandeja aos predadores :

    ” É toda uma rede armadilhada de justiça paralela, um roubo de soberania, que os governos andam para aí a assinar sem dizerem nada a ninguém.
    Porque gostam de nos oferecer de bandeja aos predadores.”

    • Ana Moreno says:

      Obrigada Isabela!
      A esperança, neste caso concreto, é pequenita e no geral do estado do mundo tende para zero. Mas nestas coisas, com ou sem ela, continuar a lutar é a única opção se queremos estar de bem com a nossa consciência 🙂
      Abraço forte!

    • Já dizia Rei Herodes, ou bem que pagas ou... says:

      “Porque gostam de nos oferecer de bandeja aos predadores.”

      Faz lembrar aquela história (antiiiiiiiiga!) de quando Herodes, a pedido, e não tão contrariado como possa ter parecido, ofereceu a Salomé a cabecinha de (São) João Baptista…

  5. Depois ficam admirados que a extrema direita suba em votos e a xenofobia cresça. Porque será!?
    Cá por mim estou fora das lógicas de poder atuais.
    Estou em ruptura com o dito “sistema”, embora me considere ideologicamente um social-democrata.

  6. Anónimo says:

    Muito bom, Ana.
    “In favor of private arbitration”.
    Nesta UE se a Alemanha e a França estão do mesmo lado é porque algo está mal para o mexilhão.
    Neste caso Justiça ao gosto do pagador. Enfim, cada um tem os seus Banqueiros, Almirantes, Generais … Tribunais e Juízes.
    É mais ou menos como quando PS e PSD concordam (imediata e exepcionalmente) com uma Lei … a dos subsídios a partidos. Algo está mal para o cidadão comum.

    “… The Netherlands were supported in their views in favour of private arbitration by the German, French, Finnish and Austrian governments, while Slovakia’s position was supported by the Czech Republic, Hungary, Poland, Romania, Italy, Spain, Greece, Cyprus, Estonia and Latvia….”.

    Portugal historicamente pugna por estar com o Reino Unido … 🙂
    Claro que quem está na lista de pagamentos de esta UE até gosta de esta UE. Porque não?.

    https://www.express.co.uk/news/world/928684/EU-news-treaties-ECJ-arbitration-clause-investment-protection-agreements

  7. Ana Moreno says:

    Obrigada pelo link do artigo!
    “Nesta UE se a Alemanha e a França estão do mesmo lado é porque algo está mal para o mexilhão.” 🙂 🙂 🙂

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